segunda-feira, 1 de outubro de 2012

"Palhaço Assassino"(1989) - Victor Salva



Me perdoe "It" de Stephen King ou até mesmo os filmes sobre John Wayne Gacy,o palhaço que estrupou e matou 33 jovens  entre 1972 e 1978 em Illinois.Se há em película a tradução arrepiante de coulrofobia,esta é "Palhaço Assassino".Um dos slashers a fechar a sinistra década de 80 e abrir a ainda mais sinistra década de 90.Não é o jogo de música,som e luz para criar um clima de terror chupado de Carpenter e derivados que torna o filme tão sinistro,mas sim uma perversidade constantemente subentendida e que só pode ser explicada por Victor Salva.Apadrinhado por Francis Ford Copolla que veio a financiar este e futuros filmes de Salva,o diretor sabe realmente assustar.Um dos grandes filmes de terror dos anos 2000,"Olhos Famintos"(2001),é seu.Mas Salva também era um doente sexual,um pervertido homossexual que foi acusado pelo protagonista de "Palhaço Assassino",Nathan Forrest Winters com 12 anos na época,de assédio.Acusado de estupro,de ter feito sexo oral com a criança e de ter filmado tal cena,Salva foi setenciado,passou 15 meses preso e foi registrado como agressor sexual.Assustador não?É...as vezes um filme de horror pode estar sendo conduzido por alguém mais aterrorizante que os monstros que estão sendo retratados na tela...ou doente,sei lá...sei que mesmo com essa terrível mancha  ele ainda faria filmes que eu não considero ruins como o supracitado "Olhos Famintos",a fantasia jovem da Disney!!!"Energia Pura"(1995,filme que levantaria sua ficha para o público e o deixaria fora de cena até 1999) e o filme-de-auto-ajuda "Poder Além da Vida"(2006).

Não há de se negar portanto o caráter doentio do filme que carrega cenas incrivelmente bem dirigidas se distanciando do verossímel para destacar o caráter onírico de pesadelo fóbico com personagens tão plausivelmente demoníacos como palhaços.O enredo é o seguinte: São três irmãos sozinhos em casa.Casey,o mais novo,tem uma terrível fobia de palhaços.Geoffrey(Brian McHugh) é o do meio que proteje Casey das provocações do mais velho Randy(Sam Rockwell em seu debut).Depois de irem ao circo à noite eles são perseguidos dentro de casa por três psicopatas que fugiram do manicômio e assassinaram e roubaram as vestes dos palhaços do circo.O filme usa os andares da mansão dos garotos para uma sucessão de personagens correndo escada acima,escada abaixo e surgindo sorrateiramente por detrás das portas.Dentro de casa,como se você acordasse de um pesadelo e este se tornasse real no ambiente em sua volta.O medo de Casey é completamente justificado na incrível cena em que ele entra em pânico com um inofensivo palhaço no picadeiro do circo,na iluminação da lua como um halo no rosto colorido dos assassinos  no caminho que os garotos tem que percorrer sozinho para inocentemente comprar pipoca, a expressão naturalmente louca de Michael Jerome West como o palhaço Cheezo e a nervosa trilha sonora.Como todo bom slasher,qualquer ato falho narrativo é compensado com a intenção de irrealidade e compactação sensorial de som e imagem para produzir frios de barriga,arrepios,risos ou simplesmente interesse.Contos de terror em volta da lareira,machados,sensações paranóicas ou um eficiente filme b de um artista sexualmente pervertido,esse é "Palhaço Assassino".

"City Hunter"(1993) - Wong Jing



"City Hunter" foi um daqueles filmes pelo qual eu fui apedrejado pela família por alugar o VHS e obrigar todos em casa,que nem conheciam Jackie Chan,a assistir.Por mais que a rapaziada viesse a gostar do ídolo de Hong Kong no futuro,esse filme permaneceria como uma mancha no meu currículo de locador de fitas.Para mim ainda é uma pérola da comédia de Hong Kong e um dos melhores trabalhos de Chan.Baseado num mangá de Tsukasa Hojo sobre um detetive mulherengo meio Marlowe e meio 007 lançado nos anos 80 pela icônica revista japonesa Weekly Shonen Jump e pela série animada de 1987,a proposta do filme desde o início é ser um live action cartoon permeado por um humor surreal,cenários coloridos estilizados e edição tão maluca quanto os ótimos tiroteios.Numa paleta de cores azuis e vermelhas Hunter perde seu amigo num tiroteio.Em meio a diálogos hilariantes,este lhe deixa a sobrinha Kaori(Joey Wong) aos seus cuidados com a promessa de que Hunter não a seduzirá.A garota porém cresce(em uma descida de escadas!!) e se torna atraente fazendo com que Hunter seja assombrado pela promessa de seu parceiro(em porta-retratos falantes!!).As desventuras do personagem se desenrolam quando ele é contratado para encontrar Shizuko,a filha de um milionário,num cruzeiro invadido por mercenários homicidas,juntamente com Kaori e seu primo babaca.

A briga de Chan com Wong Jing nos bastidores fez o astro negar a produção em sua filmografia e ofender publicamente o diretor na imprensa de Hong Kong.Coincidentemente este viria a ser um dos seus filmes mais interessantes e um dos seus personagens mais correlato com seu sonho de ser lembrado como o Buster Keaton oriental.Apesar de todo o conceito de Dick Tracy  onde Chan tanto pode ser o badass quanto o palhaço pastelão,o filme não se apóia somente no protagonista havendo uma interação de personagens tão hilários quanto perigosos: o jogador que usa um ás na manga como arma mortal,o guarda-costas do vilão e as sempre presentes personagens femininas que,pra variar,são lindas orientais que apanham tanto quanto os homens.

A freneticidade satisfatoriamente estilística do filme guarda momentos de surpresa com uma intertextualidade com o mundo pop pós-anos 80 em passagens brilhantes.Durante uma fuga dentro do cruzeiro,por exemplo,Hunter e Shizuko entram dentro de um cinema onde está sendo projetado a gloriosa cena da luta de Bruce Lee(com quem Chan trabalhou como dublê aos 17 anos)com Kareem Abdul-Jabbar em seu último filme "O Jogo da Morte"(1972).Shizuko assiste a cena e elogia a habilidade do mestre com o "negão alto".Zombamente Hunter solta: "- Eu enfrentaria dois desses!".É quando do nada aparece em meio às poltronas dois negões tão grandes quanto Jabbal.Usando das mesmas habilidades que o mestre desenvolve na tela para quebrar o jogador de basquete,Chan tenta se virar com os gigantes,apanhando pra valer e sempre com uma vulnerabilidade cômica.
Uma das cenas que mais fazem City Hunter ter a cara de sua época é quando Hunter cai em cima de uma máquina de flipper e incorpora personagens de Street Fighter 2 em uma luta de video-game com o vilão Kim(Gary Daniels,perigoso),numa série de especials e golpes sequenciais que fizeram a alegria de quem tem mais de 20 anos."City Hunter" é o filme que Chan anda de skate e puxa um kickflip,morou?.A luta final com Richard Norton é uma das grandes coreografias de um filme do Chan,que tem as canelas e os braços violados sem dó por barras de ferro enquanto o seu estômago clama por um prato de comida.

quinta-feira, 27 de setembro de 2012

"Army of Darkness"(1992) -Sam Raimi



Conhecido no Brasil como "Uma Noite Alucinante 3",é importante ressaltar o título original pois comprova o distanciamento da abordagem em relação à "Evil Dead"(1981) e "Evil Dead 2"(1987).Enquanto o primeiro foi uma obra-prima do trash que literalmente tocou horror em Cannes,uma aula de cinema e de técnica de manipulação emocional;o segundo consegue afundar o anti-herói Ash(Bruce Campbell) num universo de horror ainda mais assustador com o uso de efeitos mais elaborados provindo da frouxa produção já concedida para Sam Raimi,e equilibrando o humor com o terror com uma maestria que seria difícil de se igualar em tristes tentativas vindouras.Em "Evil Dead 2" Raimi incorpora o seu amor pelo humor slapstick ao gore,mas impossibilitado pelo ainda baixo orçamento,não conseguiu seguir a sua vontade de colocar Ash na Idade Média,usando de um sensacional e ambíguo epílogo que ficou como gancho para a possível seqüencia.
Sam Raimi decidiu,já com grana, passar para a tela o espírito das histórias em quadrinhos em "Crimewave"(1985),uma associação com os Coen onde a falta de sucesso veio da primeira experiência com a intervenção de produtores no seu conceito.Impossibilitado de adquirir os direitos do personagem pulp dos anos 30 "O Sombra"(que viraria filme com Alec Baldwin),ele decide criar o seu próprio herói em homenagem aos filmes de horror da Universal no ótimo "Darkman"(1990).

É com esse espirito de comic-magazine e com o dinheiro obtido com o sucesso de "Darkman" que Raimi consegue criar um universo paralelo com "Army of Darkness",pegando o promissor personagem Ash e definitivamente o transformando num ícone,dentro de um dos maiores exemplos do "terrir" de qualidade dos anos 90.Comparar com os outros filmes da franquia,que continham um poder low-budget autoral e uma claustrofobia monocênica que possibilitava o uso extensivo das piruetas técnicas do diretor em construção de climas e sustos,seria injusto com o "Army of Darkness",que apenas usa a força do carisma de Bruce Campbell e dos elementos que dão continuidade à trama para  mostrar o que Raimi realmente poderia fazer com um alto orçamento,se mostrando como um dos grandes tradutores em película do universo dos quadrinhos,que resultaria mais tarde em sua escolha para assumir o controle de Spider-Man,sendo  "Homem Aranha 2" um dos melhores exemplos de uma adaptação de super-heróis transformada em arte."Army of Darkness" é um daqueles filmes que ficaram numa época,e que mesmo que continue delicioso e divertido ainda hoje,não poderia ser refeito com o mesmo charme - vide "Arraste-me para o Inferno"(2009).

O uso de Introvision que transforma mitologicamente o rico cenário e as atuações propositalmente out-of-the-real com a  canastrice heróica de Bruce Campbell conseguem manter o clima do filme não pelo medo que o espectador possa ter,mas pelas desventuras do protagonista,que amadurecendo após apanhar tanto dos demônios,adquire um caráter badass com a mão amputada substituída por uma moto-serra e uma invejável habilidade de manuseio de carabinas com a mão esquerda.A direção frenética e imaginativa se funde com a alma pulp de terror/cômico com Ray Harryausen sendo homenageado à altura com o exército de esqueletos que interagem de forma surreal com os humanos,fazendo jus ao estado puro de arte cinematográfica de filmes como "Jasão e os Argonautas"(1963).Ainda uma carta de amor à cultura pop,o filme não tem medo de referências abruptas à clássicos  da literatura como "Viagens de Gulliver" ou "Um Americano na Corte do Rei Arthur" misturados à famosa gag do "dedo-no-olho" dos Três Patetas e à frase klatu barata niktu de "O Dia em Que a Terra Parou" .Bruce salva qualquer cena da displicência inútil embarcando com Ash o cerne psicológico da criação de qualquer herói de HQs,com a cena final no supermercado o igualando na dicotomia homem comum/super-herói com um simples funcionário de super-mercado deixando de ser o tedioso nerd rotineiro para se tornar rei ao seu jeito.Clássico.


terça-feira, 25 de setembro de 2012

"Sexta-Feira 13"(1980) - Sean S. Cunningham



  
 
Antes de Tobe Hooper surgir com "O Massacre da Serra Elétrica"(1974) e Carpenter sonhar em dirigir "Halloween"(1978),Cunningham dirigia sexploitation e filmes com característica lixão.Em 1972 ele produziu "Aniversário Macabro",dirigido pelo amigo Wes Craven,e que dentre todas aquelas produções seria a única a realmente apresentar uma mensagem irônica em relação à decadente filosofia hippie defronte da crueza dos anos 70."Aniversário Macabro" está entre aqueles filmes representantes de uma época,um abridor de portas para o terror real escondido por trás de libertárias canções folk
Apesar disso,foi obviamente o sucesso do filme de Carpenter que o levou a querer a criar uma montanha-russa de horrores seguindo o mesmo molde de serial killer.Enquanto "Halloween" criava algo novo usando um balde de referências que ia de "Psicose" à trilha sonora de "O Exorcista","Sexta Feira 13" usa o próprio "Halloween" como referência,principalmente com "Psicose"(de novo!),"Tubarão", "Carrie" e o giallo italiano.

A introdução já é uma homenagem ao filme de Carpenter,com a manjada câmera subjetiva mostrando um crime do assassino.Mas é com "Psicose" que o roteirista de novelas Victor Miller brinca mais,subvertendo os elementos mais memoráveis do filme de Hitchcock.O filme começa acompanhando uma estudante que vai descolar um bico no acampamento que falsamente parecer ser a personagem principal para logo ser eliminada...como a Marion Crane de Janet Leigh.Dessa vez não é o filho que incorpora a personalidade da mãe morta,mas é a própria mãe que busca vingança pela morte de seu filho Jason que morreu afogado no lago do camping Crystal Lake no qual ela trabalhava como cozinheira.E é aí que entra um dos maiores paradoxos da cultura pop.Aquele psicopata de máscara de hoquei que sai matando com um facão ja nasceu morto,e simplesmente inexiste na mente criadora da série em seu primeiro filme,tanto na de Cunningham quanto na de Miller,ressucitado em filmes seguintes como uma ferramenta caça-níquel.Claro que existe o horripilante gancho-final derivativo de "Carrie",mas foi uma idéia de Tom Savini,o maquiador de Romero que se esbalda em sua arte de extrair efeitos de horror que podem te fazer rir como gritar,e que acabou sendo o verdadeiro responsável pela materialização de Jason.
O que justamente acaba enfraquecendo o filme e que deveria ser seu momento mais forte é a revelação do vilão,a atuação de Betsy Palmer que tinha aceitado o papel para poder pagar contas,e que se revela uma senhora frágil demais apesar de insana,e incapaz de cometer assassínios tão musculosos.Por isso que eu afirmo que "Sexta-Feira 13" é bom só até a aparição de Palmer,que se salva pelos closes nervosos que Cunningham dá em sua boca escancarada.

Mas o que faz o filme ser bom além de divertido?Primeiro é a forma como o diretor conduz o suspense,que está longe de insultar a inteligência.Arrisco dizer que ele vai além de Carpenter,usando de movimentos de câmera que te colocam mais do lado dos personagens,atento com o background para ansiosamente avistarmos o sinal do vilão nas costas das garotas gostosas indefesas.Da onde ele vai surgir?Como ele vai matar agora?Tape os olhos!Apesar de extremamente eficiente,a trilha sonora poderia ser até acusada de pastiche de "Tubarão" com Bernard Herrmann.Mas a trilha de Carpenter para "Halloween" também era.O que salva as duas é o diferencial,o ponto de autenticidade.Enquanto Carpenter se salva por criar um icônico riff num tecladinho com uma simples escala de notas,Harry Manfredini resolve colocar sussuros que atingem  a subjetividade da mente do psicopata antes mesmo dele ser revelado."Kill Mother!" ou "ki ki ki ma ma ma".Absolutamente brilhante.

E quanto aos argumentos retrógados dos conservadores que iam de encontro ao sexo,à violencia e às drogas?
Primeiro: sexo não é gratuito,é apenas sexo,se isso já tinha sido deixado bem claro nos anos 60,em 1980 já devia ter sido assimilado.E jovens não só vão,como devem ir para acampamentos para foder...essa é a razão da adolescência.
Segundo: jovens consumindo maconha são jovens drogados?Ah...por favor heim...até Shakespeare  fumava.Jovens devem ir acampar não só para foder,mas para fumar maconha.
Terceiro:a violência e o gosto de se sentir medo é uma faceta humana,e deve ser explorada pela arte sem hipocrisia,como uma extensão emocional de um trem-fantasma.
 Os críticos Roger Ebert e Gene Siskel foram publicamente chamar Cunningham de lixo,dizer que tais filmes faziam o público se associar ao monstro e que não deveriam ser assistidos.Siskel chegou ao ponto de expor o endereço de Betsy Palmer para que escrevessem cartas de insatisfação à ela.Esse tipo de atitude fascista só mostra que críticas de arte de alcance conservador podem ser mais ridículas e nocivas que qualquer produção b do cinema,e o quanto a confiança do público nessas críticas deve ser reavaliada,assim como o papel da crítica,que está se tornando cada vez mais banal.

sexta-feira, 21 de setembro de 2012

"Viagens Alucinantes"(1980) - Ken Russell



"Viagens Alucinantes" é um daqueles filmes que devem ser vistos em tela grande.Um dos espetáculos visuais mais impressionantes,letárgicos e psicodélicos do cinema.Só que há um porém.Aprecia mais quem já teve sob influência de drogas psicoativas.Não adianta dizer que não...é uma realidade.Ken Russel foi um dos grandes diretores a colocar o psicodélico em imagens cinematográficas,como em "Tommy",que se baseia no álbum conceitual do The Who,clássico do rock pós-67.Suas cinebiografias sobre compositores guardam uma ligação de estados alterados com a música.E não é só isso,ele tinha uma conceitualização artística em seus filmes que davam uma liberdade à câmera e aos personagens em narrativas de uma pungência áudio-visual incrível.

Baseado nos experimentos do cientista John C. Lillys, o filme conta a busca obssessiva do professor de psicologia Jessup(William Hurt em seu debut)pelo estado puro da consciência humana,na tentativa de provar o quanto os estados alterados da  mente podem constituir uma realidade tão verdadeira quanto o nosso estado normal,trancado em tanques de isolamento.Ele decide viajar para o México para fazer uma experiência tribal com Ahayuasca(uma erva alucinógena) e após sofrer uma viagem única de estado alterado de consciência,ele volta com a droga para os EUA e começa a fazer testes sobre o efeito dela nos tais tanques,até que progressivamente a sua genética humana vai regredindo ao homem-primata em direção à um estado de proto-consciência,de origem da vida.Baseado num livro de Paddy Chayefsky,o premiado roteirista de "Marty"(1955),seus personagens agem alienadamente em diálogos bem construídos que vagueiam pelos delírios místicos de Jessup e explicações científicas-filosóficas sobre sua busca e como sua obsessão pelo trabalho prejudica a sua humanidade e família.

As cenas surreais editadas poeticamente dos delírios de Jessup são de uma lindeza impressionante com um trabalho de edição de som magnífico e a trilha sonora de John Corigliano indo de forma angustiante do horror ao fantástico.E é aí que entra um facto:de que o filme é melhor compreendido sobre drogas psicoativas.Somente quem já atingiu o estado alterado da consciência uma vez na vida vai se sentir como Jessup,que não presta atenção ao seu amigo Manson,respeitado médico que nega as causas da experiência por causa de um suposto perigo.Todos os medos de infância de Jessup e sua negação de Deus após a morte do pai se fundem com sexo,demônios e fogo numa montanha russa de imagens sonoras.Junto com "Medo e Delírio" de Terry Gilliam,esse é um dos poucos filmes que conseguem retratar em arte cinematográfica o delírio extra-sensorial das drogas.A cena em que Jessup vira matéria cósmica e é resgatado heróicamente por sua mulher é de um poder tão impressionante quanto as idéias que Douglas Trumbull deu para Kubrick retratar o portal de estrelas de Júpiter em "2001",uma óbvia inspiração.De deixar de boca seca.


quinta-feira, 20 de setembro de 2012

"Terror nas Trevas"(1981) - Lucio Fulci



O horror nasceu com o romantismo gótico?Muitos dizem que sim.Livros góticos como "O Castelo de Otranto"(1764) de Horace Walpole,"Frankenstein"(1818) de Mary Shelley,"O Médico e o Monstro"(1886) de Robert Louis Stevenson e "Drácula"(1897) de Bram Stoker estão como pioneiros de um gênero que ressucita mortos e lidam de forma metafísica com o limbo desconhecido entre a vida e a morte.E isso só pra citar os que eu li.Mas o horror sempre esteve presente no folclore antropológico de todas as tribos humanas encontráveis no mundo.Desde os deuses da guerra,passe pelas mulas-sem-cabeça,lobisomens,duendes do mal,...O sobrenatural metafísico expôs a fragilidade da carne e a angústia existencial humana desde Sócrates,Platão e Aristóteles.A existencia de outro plano independente da existência de Deus ou não sempre esteve como âmbito das discussões sociais mais arcaicas.

No começo do século XX o teatro de vanguarda aliado ao surrealismo começou a lidar com a fragilidade carnal e os sentimentos genuínos de medo que a arte podia oferecer.Porque a arte acima de tudo é expressão de todos as emoções humanas possíveis incluindo o medo,o desespero,a angústia,o terror e o horror,para gerar reflexões através da perturbação sensitiva,reflexões sobre nós como carne e espírito.O Manifesto Surrealista foi lançado em Paris em 1924 por André Breton e a característica fundamental do movimento era o fascínio por Sigmund Freud que dizia que o estado irracional da vigília human era torpe e podia libertar tanto a criança quanto o selvagem existente em nós.Sendo assim,de forma anárquica os surrealistas negavam a razão na arte.Mas não negavam a lógica como o Dadaísmo de Tristan Tzara,eles apenas substituiam a lógica do real pela lógica dos sonhos freudianos,da análise mental e da estimulação emocional pelos instintos primários.Por isso o sexo,a nudez,a violência e o olho cortado ao meio em "Cão Andaluz" de Luis Buñuel,só pra citar o primeiro exemplo de surrealismo no cinema.Nesse contexto surgem o Teatro de Grand Guignol em 1897 dedicado exclusivamente ao gênero horror que moderniza o sangue e o gore populares desde "Titus Andronicus" de Shakespeare e que na ascenção surrealista teria seu auge de popularidade.

É importante ressaltar esse contexto histórico porque existem muitos erros na forma como o cinema de Lucio Fulci é visto e analisado  até mesmo pelos próprios fãs.Fulci não era um moleque que jogava perversão na tela na forma de terror divertido de grindhouses.Ele era um artista com uma visão abrangente,um senhor culto que amava o surrealismo e que trabalhou como crítico de arte."Terror nas Trevas" é a síntese de seu objetivo artístico.O filme seria uma homenagem à Antonin Artaud,um desses vanguardistas franceses do surrealismo,que criou o "Teatro da Crueldade" onde todo o elemento sonoro,cênico e de iluminação estaria à favor da manipulação da audiência não como forma de sadismo mas para,nas palavra do próprio Artaud,restaurar ao teatro uma passional e convulsiva novidade na concepção de vida.O Teatro da Crueldade colocava o espectador como participante ativo da narrativa,e todas essas qualidades artaudianas são transformadas em cinema em "Terror nas Trevas",transformando uma produção de baixo orçamento no maior exemplo de horror pós-moderno.

Lucio Fulci está acima de rótulos e também esta cima de qualquer sentimento nostálgico de infância regada por sessões diurnas de cine-trash."Terror nas Trevas" está acima de qualquer crítico pseudo-intelectual que tenta defende-lo e não sabe como,usando de simplismos como "a intenção dele é o ilógico","retrato de um pesadelo","atmosférico" etc."Terror  nas Trevas" é uma obra de arte completa,onde todos os elementos fílmicos são harmoniosamente colocados em prol da emoção não como exercício de estilo,mas para cumprir com sua intenção "cruel".Trabalho de câmera,trilha sonora,atuações,tudo converge para o mesmo objetivo freudiano onde o medo infantil é contrabalanceado com o selvagem da violência carnal.E claro há todo um conceito pulp tanto na literatura  de magazines como na edição estéticamente cartunesca,ou até mesmo no legado de Sergio Leone em mise-en-scènes de jogos de closes de silêncio,na trilha morricônica macarrônica e na interação propositalmente  camp dos atores que ressaltam não o ilógico como muitos defendem,mas a lógica do tema do desespero humano nas ondas surreais disconexas de um pesadelo.O filme abraça juntamente com o já citado conceito surrealista freudiano e a crueldade do teatro de Artaud,o horror das pulp fictions que surgiram na primeira metade do século com o o niilismo sem fé e desesperado de H.P. Lovecraft.Isso fica claro no uso do Livro de Eibon no filme,criado por Clark Ashton Schmidt e usado por ele e o Lovecraft em diversas edições da revista "Weird Tales" na década de 20 e que retratavam a fantástica mitologia Cthulhu.

Fucci usa do controle autoral abrangente para promover a participação voyeurística do espectador em travellings,câmera subjetiva,jogo de campos,enquadramentos e ballets de angulações sempre de caráter simbólico ou informativo como no inicio deslumbrante em sépia com a edição brincando com o quadro pintado por Sweick(pintor que descobre a chave para o portal do inferno) e com a sua própria condenação em momentos contemplativos de sangue e dor.Edição que fará um constante jogo de terror versus serenidade como quando o olho do encanador é extirpado de sua órbita cortando repentinamente para o silêncio da estrada,na incrível cena em que a personagem Liza encontra a garota cega.Uma criança vendo o cadáver de seu pai(o encanador) no necrotério ao mesmo tempo que tem que assistir o corpo de sua mãe se decompondo com ácido;cercada pelo horror ela abre a única porta disponível e se depara com mais cadáveres,com Fulci finalizando com um grito em freeze-frame e cortando para a sofisticação de um clube de jazz onde já de inicio ele usa o jogo de foco de campo e contra-campo com o rosto de Liza e a banda no background.Juntamente com esse todo conceitual está a edição sonora no barulho do carrinho no corredor do hospital,o coro fantasmagórico das tarântulas, a água e os canos no porão do hotel e os gemidos dos zumbis.A trilha sonora de Fabio Frizzi é brilhante e climática num feliz matrimônio estilístico e autoral com o diretor,levando adiante o poder psicológico/temático que Herrman e Morricone impuseram ao cinema com frases tensas de piano,coros infernais,sopros exultantes(nos créditos a trilha anuncia o início de uma nova abordagem) e acelerações rítmicas(principalmente nos momentos mais violentos).

Apesar de ter feito grandes trabalhos autorais e honestamente artísticos,Fulci morreu pobre,doente e renegado à "midnights sessions".A hipócrita crítica de cinema do pós-guerra capitalista simplesmente nega os lados mais obscuros da mente humana,nega Freud,nega os grandes movimentos artisticos do seculo XX para defender uma suposta esperança hipócrita.Dizer que tal esperança deve estar sempre presente na arte é por fim negar o próprio ser-humano,visto que desde a Idade das Pedras as manifestações artísticas são retrato das emoções humanas,sem se preocupar com pré-conceitos ou em esconder o horror da fragilidade material da carne humana em prol de uma utópica sociedade.É essa negação e falta de visão abrangente que faz com que gente coxinha como Roger Ebert faça questão de ir em programas televisivos para condenar o niilismo e a violência no cinema,como se isso fosse feito por seres anormais perversos ou adolescente punheteiros."Além das Trevas" não é sangue e carne dilacerada jogada de forma aleatória por pleno sadismo de distúrbios psicossexuais,é um artefato fílmico com um objetivo eficiente para aqueles que conseguem enxergar a arte acima do pré-conceito.Então muito cuidado quando forem falar mal de algo que não seja favorável ao mundinho pequeno ao qual estão enclausurados,porque pessoas informadas podem simplesmente te desarmar.Não trate o horror como uma coisa passageira,como um orgasmo fugaz.O horror é a faceta mais antiga do homem desde que Odisseu massacrou os pretendentes de Penélope no épico de Homero ou quando Jesus e Fausto sofreram intervenções de Satã.O horror está no subconsciente de cada um de nós,e cabe a nós deixar esse sentimento ser explorado por artesões psicanalistas competentes...e Lucio Fulci mostrou com "Terror nas Trevas",ter sido um dos grandes.

"Brother"(2000) - Takeshi Kitano





Em "Brother" Takeshi  é Aniki,um funcionário da Yakuza que se envolve em uma briga de famílias e vê a morte de seu chefe seguida da submissão covarde de seu irmão que corta o próprio dedo para demonstrar fidelidade ao inimigo.Nessa perda de lealdade fraternal e de honra mafiosa na Yakuza,Aniki desce em Los Angeles para encontrar seu outro irmão,o mais novo e que deveria estar longe do crime,enrolado com uma gang de bandidinhos que vendem drogas na esquina  e que não possuem atitude para comandar no crime.Assumindo as rédeas,Aniki não enxerga freios,e na tentativa de montar uma outra associação fraterna dessa vez bem sucedida ele vai eliminado os rivais facilmente até ter que se defrontar com os italianos.Montando sarcasticamente uma hierarquia criminosa,Kitano põe a Yakuza como uma decadente rixa de amostras de honras superficiais,os negros americanos como irresponsáveis,os hispanos como irrelevantes e demonstra uma certa reverência para a secular Mafia italiana.Com o sentido de família mais uma vez destroçado por mais um irmão covarde em frente ao destino,o verdadeiro "brother" acaba sendo o cupincha Denny(Omar Epps),negro desbocado que sofreu uma garrafada no olho de Kitano logo de chegada.


"Brother" não conseguiu me extasiar como "Hana-Bi",mas é Kitano violentamente  melancólico e irônico.Kitano não surgiu  como um cineasta antropofágico típico do início dos anos 90,ele foi matéria-prima original assimilado pela antropofagia.Aliás...Kitano nem surgiu como cineasta,surgiu como comediante stand-up,polêmico por gozar da sociedade e dos "marginais" sem perdoar idade,crença,beleza,status.Foi proibido de entrar em emissoras de tv.Teve um programa de tv.Escreveu romances ,poesias e livros sobre cinema.Pintou aquarelas..."Hana-Bi" por favor.Mais uma coisa...Takeshi Kitano na verdade é Beat Takeshi e vice-versa.No cinema Kitano brinca com a Yakuza e com a morte que convive ao seu lado,niilista com sorrisos de sarcasmo.Mas também pode ser suave e família ou se auto-ironizar.


 Com tudo isso,Kitano É a cultura japonesa...se bobear Kitano É o Japão moderno.Duvida?Então ponha "Glória ao Cineasta"(2007) para rodar.Kitano não surgiu com o cinema,o cinema como a arte completa engloba todas as suas facetas.Assumindo total controle da obra,Kitano dirige,atua,edita.Na verdade ele faz mais que atuar...ele cria uma persona,um Eastwood Yakuza,um Yoshimbo de terno e óculos escuros.Um dos maiores autores a surgir no cenário japonês pós-moderno junto com Juzo Itami.
Em "Brother" Kitano joga com honra,fidelidade,valores e família.Mostra que é tão duro Caim matar Abel quanto deixar Abel às traças.Nessa desilusão a América se mostra como o palco do mergulho de Aniki na violência,com a passividade de sua personalidade profetizando o teste mortal de honra.Denny e a perda da família entra em sintonia com a alma de Aniki,o que causa o ato de gratidão final e a atitude de entrega da vida ao inimigo,até porque a vida é carne e vazio sem o laço familiar.Através da aridez poética da narrativa,de montagem com sinapses violentas e longos planos estáticos de vida corrente e real de convívio, Kitano monta esteticamente o desespero moderno mostrando a vida como uma comédia perversa...e prova ser um cara que conhece as ruas e seu desesperançoso ecossistema,independente da nacionalidade dessa rua.