sábado, 8 de setembro de 2012

"Depois do Vendaval"(1952) - John Ford




"Depois do Vendaval" é o mais próximo que o cinema chegou da pintura.Uma das mais belas fotografias do cinema que não beiram a pretensão,muito pelo contrário,espelham a alma de um diretor.É o filme de Ford que mais vontade dá de ver e rever.É um sonho realizado,um universo retratado.Cada fotograma envolvendo a paisagem é uma obra-de-arte particular,cada interação entre os personagens um remédio para a alma.Tendo que filmar o western "Rio Grande" para que financiassem  "Depois do Vendaval",Ford surpreendeu fazendo do filme seu maior sucesso até então,e um dos maiores expoentes de sua arte.

A Innesfree(Irlanda) é o Rosebud de John Ford,a infância perdida que ele sempre tentou buscar em filmes como "Como Era Verde o Meu Vale"(1941),mas que atinge a plena realização psicoanalítica com "Depois do Vendaval" não  só devido à cor,mas pelo claro posicionamento de um alter-ego.Muitos que não conhecem o estilo autoral de Ford se julgam erroneamente no direito de julgar o suposto conservadorismo e sentimentalismo que o filme encerra,o que passa longe de ser uma verdade."Depois do Vendaval" é o subconsciente de Ford sendo espremido como um limão,resultando em todos os seus arquétipos junguianos convivendo numa utópica e idealizada sociedade onde Sean Thorton(John Wayne) desembarca vindo dos EUA para achar refúgio espiritual,perturbado por ter matado acidentalmente um adversário seu numa luta.Chegando no vilarejo de Innisfree ele já consegue inimizade com Will Danaher(Victor MacLaglen,grande e engraçado)pela compra da propriedade em que nasceu,ao mesmo tempo que se apaixona por Mary Kate(Maureen O'Hara)...irmã de Will.
Conseguindo se casar com a ajuda dos outros habitantes,Will não entrega o dote de Mary,sendo que para isso Sean teria que encarar Will no soco,o que ele não faz devido ao trauma do boxe,lhe dando uma fama de homem quieto enquanto sua recém-mulher o despreza acusando-o de falta de masculinidade.

Numa Irlanda onde católicos e protestantes se apoiam mutualmente,e onde pescar,plantar e beber regem a rotina diária,Ford coloca o sexo como o motor de toda trama e acaba subvertendo os valores conservadores na figura do americano Sean,que foge com Mary de bicicleta;a beija sem  pedir,sozinho numa cabana; e não aceita aquilo que o clássico alcoolizado fordiano interpretado por Barry Fitzgerald lhe avisa:
" -Aqui não é a America,é a Irlanda!"
lembrando o quanto era importante a tradição para aquela comunidade viver como vivia,alienada em cantorias etílicas e eventos anuais.Os cabelos ruivos de Maureen juntamente com seus movimentos e olhares maliciosos ressaltam o fogo sexual que impera em seu corpo de virgem.A simbiose natural de Ford da paisagem com o homem alcança a hipérbole nesse filme,se mostrando como o Paraíso celeste desejado pelo diretor em seu pós-mortem,numa das raras visualizações em cinema de um mundo perfeito num sonho absolutamente realizado em meio a ventos,gramados,lagos,pontes e amizades.

"Trono Manchado de Sangue"(1957) - Akira Kurosawa




Kurosawa foi um dos grandes retratistas dos sentimentos humanos conseguindo pincelar com uma visão cinematográfica abrangente e a frente do seu tempo,as diferentes reações do homem diante do destino.Da mesma forma como Orson Welles,e tão influente quanto este,as peças de Shakespeare cabiam como uma luva para  a facilidade com que ambos tinham de mergulhar na alma humana e mergulhar no redemoinho da soberba,da ambição,da tolice e da intolerância do homo sapiens.Em 1948 Welles filmou "Macbeth",um filme barato mas rico de arte expressionista cinematográfica,que junto com a fidelidade do texto original se coloca como a maior adaptação da obra no cinema e um dos filmes mais dilacerantes do mestre;9 anos depois Kurosawa iria transpor a peça para o seu tão explorado japão feudal da Era-Sengoku,com "Trono de Sangue".

Se servindo da trama sobre maldição e ambição do bardo inglês,Kurosawa coloca sua visão lírica-aventuresca à favor de uma edição multi-angular fazendo com que o filme se insira àqueles que,como "Rashomon"(1950) ou  "Os Sete Samurais"(1954),inspiraram gente como Sergio Leone,Scorsese,John Millius,Spielberg,Yimou e até o próprio Welles em "Falstaff".Fica claro por exemplo da onde Leone tirou tanta chapação para "A Trilogia dos Dólares",com o modo pioneiro com que o japonês casa a construção das cenas colocando varias câmeras em diferentes ângulos casando a mise-en-scene dos atores com uma manada de cavalos e bandeirolas sujas de lama embalados pela música de Masaru Sato,que vamos e convenhamos,lembra em muitos aspectos a climatização de Morricone nos spaghetti.A marca mais registrada é interação homem/natureza chupada de Ford,que como comum nos filmes de Akira,atingem o máximo da sensibilidade oriental,com todo o caos humano convivendo com as florestas e suas arvores mantenedoras de segredos seculares,a densa neblina dissipada como uma cortina,a chuva que corta a alma e o sol que espreita por entre os galhos e entra nos aposentos à dentro.Uma ambientação tão viva visualmente que acentua o alcance realista que o perfeccionismo do diretor exige da tragédia humana,com aspectos dramáticos que seriam mais aprimorados em 1985 com "Ran",baseado em Rei Lear,outra peça de Shakespeare.

Assim como em "Ran",Kurosawa decide retirar qualquer caráter europeu da narrativa,induzindo seus atores à interpretações típicas do estilo do teatro Noh o que confere uma excelente atuação de Toshiro Mifune e Isuzu Yamada.Mifune visceral como sempre e desesperadamente afundado na paranóia,e Yamada construindo uma Lady Macbeth quase fantasmagórica em sua impassividade e submissão,máscaras da persuasão maliciosa.
O modo como o diretor foi pioneiro no horror e na violência estilizada estão tanto nos corpos de samurais esfaqueados tremendo na agonia da dor da morte lenta,quanto na incrível cena final.Um exemplo de perfeccionismo doentio,a cena que mostra o protagonista sendo linchado à flechadas é uma das mortes mais bem dirigidas do cinema,com flechas de verdade sendo disparadas contra Mifune para tornar o seu medo autêntico,à medida que a edição e a sobreposição vão transformando seu corpo em um alvo vivo.

"Coronel Blimp - Vida e Morte"(1943) - Michael Powell e Emeric Pressburger




A dupla Michael Powell e Emeric Stressburger formaram sob o nome de The Archers a maior associação autoral do cinema.Tomando para si mesmos os roteiros,a direção e a produção,a dupla viria a influenciar e muito Spielbergs,Copolla e outros da New Hollywood.Um dos seus primeiros sucessos artísticos é a  epopeia romântica de Coronel Blimp.Filmado no auge da Segunda-Guerra,contou com sérias ameaças de banimento por Winston Churchill,e muitas caras foram viradas devido ao simpático personagem alemão Theo(Anton Walbrook).
Dois anos após  o surgimento de "Cidadão Kane",Coronel Blimp mostra ser a contribuição inglêsa mais influente para o cinema moderno,guardando similaridades com o filme de Welles em muitos aspectos,tanto no modo como repentinamente desconstrói a narrativa,como no envelhecimento físico do protagonista em uma brilhante  e inovadora maquiagem.Acima de qualquer aspecto visual,como o estonteante uso da cor,é na temática e na personalidade que o filme guarda brilhantismo.

Construido como uma comédia típica do sarcasmo britânico, na mesma linha das produções da Eagle por exemplo,Coronel Blimp é um filme que acaba enveredando por questões mais profundas,se mostrando um sincero estudo de personagem.Com um timing impressionante e câmeras em motocicletas,o filme começa no meio da Segunda Guerra Mundial,onde um  pelotão liderado pelo Tenente Spud displicentemente antecipa a realização de uma "guerra simulada",abordando os generais em um banho turco.No confronto com o velho Major Clive Candy,que não aceita a desculpa da antecipação da simulação para uma aproximação maior com a realidade e pela falta de organização e modos que isso proporcionou,Spud solta um grupo de insolências e insulta o bigode de Candy,resultando numa briga de socos na piscina do clube com o velho Major disparando frases como "Você fala do meu bigode,mas não sabe como eu consegui!Você fala da minha barriga mas não tem idéia de como ela foi aparecendo!".Num pulo temporal impressionante,emerge da piscina o jovem Tenente Candy,em 1902, com o filme tomando a idéia de envelhecimento e aprendizado para tornar aquele típico general  velho e gordo inglês -Coronel Blimp  foi inspirado numa caricatura popular na Inglaterra -no protagonista da odisséia de paixões de alguém que não consegue manter seus valores de honra e dignidade através dos tempos,numa óbvia mensagem de que toda a retrógada diplomacia fleumática britânica deveria ser posta de lado diante do Nazismo.

Toda essa comédia corajosa,uma crítica aos valores ancestrais ingleses,faz com que o estereótipo que o filme faz do alemão,rindo não só da impostação e da linguagem alemã como até mesmo da farofagem da música clássica romântica,fique apenas como mais uma piada dentro do circo das rivalidades militares,se afastando de qualquer atitude xenofóbica.É preciso entender que a Alemanha foi inimiga do Reino Unido nas três guerras pela qual o personagem passa,sendo sempre o lado negro da lua.
Na Guerra dos Boers,na Primeira Guerra e mais obviamente no nazismo da contemporânea Segunda Guerra,o deboche contra o constante inimigo seria inevitável por parte do filme.Quando surge a professora de inglês Edith Hunter,o primeiro  personagem de Debohra Kerr(que faria três no filme),começa  o enveredamento do que há de mais humano na figura ágil e militar de Candy,fazendo com que o surgimento de Theo,um alemão,prove o quanto,apesar das guerras, a humanidade é ligada pelo mesmo fio que tece o amor e a amizade.

Isso acontece quando Clive decide ir de forma indisciplinada para Berlim  para fazer algo relacionado à  Kaunitz,um alemão que estaria espalhando propaganda contra a Inglaterra e coincidentemente tinha sido prisioneiro junto com ele recentemente na Guerra dos Boers.Com a ajuda de Edith,ele localiza Kaunitz e numa série de provocações hilárias num restaurante,ele ofende todo o alto escalão militar alemão,terminando tendo que se enfrentar em um duelo de esgrima com o desconhecido Theo.Com o enfrentamento resultando em uma cicatriz para cada um,Theo e Clive acabam iniciando uma grande amizade no hospital, juntamente com Edith,que  termina se apaixonando por Theo.Com um belíssimo senso de compreensão,Clive aceita de bom grado o casamento de seus amigos,mesmo apaixonado loucamente por Edith.Com o nazismo no auge,o público britânico não aceitou bem o amigo alemão que rouba a mulher do inglês,numa massificada atitude rasa e quase desumana de se ver o mundo,que propositalmente o filme queria despertar.

Separado de seus amigos  e já com o bigode crescido para esconder a cicatriz,o filme pula mais uma vez no tempo para a Primeira Guerra,onde os valores do agora Brigadeiro Clive já vão se esvaindo devido ao caos.Esse anacronismo de valores é explicito nas palavras do soldado que quando questionado sobre o que seria a tal Guerra dos Boers que o velho Clyde sempre se referia com orgulho,responde: "Aquilo não era uma guerra!Apenas uma manobra de campo.";ou na forma antiquada de interrogatório visto como ineficiente para os jovens e  violentos inquisidores "pé-no chão".
É durante a Primeira Guerra que Clive,sem nunca ter esquecido de Edith,encontra sua amada no rosto da enfermeira Barbara(Kerr em seu segundo personagem),se casando com ela após o fim do conflito enquanto Theo,do outro lado, é  mais um oficial alemão devassado pela perda da dignidade em um pais destroçado.

No início da Segunda Guerra,viúvo de Barbara,Clive acolhe o também viúvo Theo em sua casa,após este fugir do nazismo,e contrata como motorista a jovem Angela(Kerr em seu terceiro personagem),coincidentemente namorada do insolente Spud.

Roger Livesey como Candy,supera a múltipla Kerr,entregando um trabalho de atuação perfeitamente único para a época.Um ator de persona própria como Bogart ou Grant ,ele vai além,usando essas características individuais numa composição sublime.A voz e a  sofisticação de sua compostura vão criando carisma para um personagem que vai se tornando ideologicamente irrelevante com o passar do tempo,envelhecendo sensitivamente com o personagem,e tornando próximo de qualquer ser humano uma criatura tão longe de ser popular na época como longe de ser visto como alguém tão rico de identificações: o típico representante das tradições antiquadas do alto comando do exército inglês.
O roteiro dos The Archers é uma auto-paródia cortante,que costura a vida de alguém que respira o militarismo e exalta o imperialismo,desabafando o desespero pendurando cabeças de animais indefesos na parede de casa, ao mesmo tempo que o torna um  homem de carisma quase heróico.Toda a realidade é vista como uma roda que não para de girar,onde os tempos e visões vão constantemente mudando.Por mais que Theo e Candy sejam vitimas dos tempos e seus fugazes valores,sempre haverá uma Debora Ker para mostrar o quanto isso é irrelevante diante dos verdeiros valores humanos.