domingo, 30 de outubro de 2011

"Ginger e Fred" by Federico Fellini -1986

A televisão surgiu como um furacão pós-moderno perverso e engolidor da verdadeira arte no seculo 20.Suas artimanhas publicitarias e seu entretenimento vazio,forçado e alienatório foi uma das principais causas da decadencia cultural moderna.Nada mais satisfatório do que ver Fellini em seu ultimo grande filme agir com um sarcasmo cortante e engraçadissimo contra essa midia tão despudorada,lidando com temas pessoais seus como a propria "decadência", sua velhice e o medo do futuro.

Amelia(Giulietta Masina) e Pippo(Marcello Mastroianni) são dois veteranos artistas que costumavam imitar Ginger Rogers e Fred Astaire 40 anos antes e decidem se reencontrar depois de um convite feito por um programa de televisão.O mundo se encontra diferente,o aparelho televisor surge como um imã cerebral.Ninguem consegue largar os olhos dela.
O humor é a ferramenta de Fellini.Quando Amelia desembarca em Roma o maremoto cultural moderno ja a engole na figura de funcionarios da televisão,sósias dos mais variados artistas,figuras excentricas como um travesti,um velho heroi de guerra...
Amelia (Masina tão naturalmente perfeita e auto-referenciativa como em "Julieta dos Espiritos"(1965)) se encontra apavorada com todo aquele assalto de perversão e superficialidade,onde as pessoas não conversam,apenas mandam..;e numa Roma perigosa como nunca.
A direção de Fellini  por mais convencional que seja,nunca é convencional.O modo como ele distribui esse bando de personagens emergentes de um novo mundo é com a mesma quadrinização anterior.A musica de Nino Rota não existe mais ali,mas parece que Nicola Piovani(oscarizado por "A Vida é Bela")segue a mesma linha picaresca,visto que a correspondencia psicologica da musica-Fellini ainda é a mesma.

Mas o que carrega realmente o filme é Marcello Mastroianni em uma puta interpretação.O seu Pippo é um verdadeiro artista desbocado,cinico,debochado e frustrado,mesmo que procure não não deixar transparecer em meio a piadas sarcasticas.O ator se joga em seu personagem com sua voz catarrenta e constantes tosses em meio à resmungos e atitudes de escarnio.Um divertido personagem que carrega Amelia pela mão em sua erratica decisão de voltar ao passado ou não,em um programa de televisão de espetaculos passageiros e superfluos(que tem como apresentador Franco Frabrizi,ator recorrente nos primeiros filmes de Fellini como "Os Boas-Vidas" e "A Trapaça").

Enfim o final se mostra ao mesmo tempo que lindo e emocionante,uma lapide na sepultura de um artista.O rock'n roll ja tinha dominado,a televisão extrapolado,sacos de lixo espalhados por toda a cidade.Fellini se despede com sua ultima visão satirica de um futuro incerto...

"E la Nave Va" by Federico Fellini - 1983

Em 1983 Fellini ja tinha se tornado um marco historico no mundo do cinema.Seus filmes sempre satirizavam a sociedade e o ser humano com sua visão particular e extravagante.O termo "Felliniano" pode ser encontrado até em dicionarios.
Porem em seus derradeiros filmes dos anos 80 ele ja parecia se preocupar em abrir mão de muito de suas caracteristicas estilisticas antigas para equilibrar sua tecnica e sua inventividade narrativa  com arroubos artisticos moderados.Sempre exaltando a visão,a mensagem, e a arte em si.

Aqui Fellini conta uma historia que se passa quase inteiramente num grande navio fretado por principes,artistas de teatro,dançarinas,cantores de ópera,condes,barões,grão-duques,paranormais,...com destino na ilha de Erimo onde(como pedido em seu testamento),as cinzas da ilustre e gloriosa cantora Edmea Tetua devem ser espalhadas.
A chegada dos passageiros no porto na cena introdutoria é apresentada por Fellini como um daqueles documentarios mudos do inicio do seculo passado em uma clara metafora fílmica.Logo surge o personagem de Orlando (interpretado pelo ingles Freddie Jones),um jornalista intrometido que será nosso guia em meios aos caricatos personagens e situações dentro do navio,o famoso personagem bufo de Fellini,o mestre de cerimonias.Orlando conversa com nós olhando diretamente pra câmera,sujeito a gags comicas forçadas que quase me decepcionaram nos primeiros 15 minutos.
A musica e o som são tratados de forma quase metafisica nessa obra,onde experimentos aparentemente casuais permite uma interação psiquica com quem assiste.A cor do som da voz,a orquestra de copos nivelados com agua,a galinha hipnotizada.São situações expostas como uma curiosidade que esta sendo partilhada diretamente com nos.

A ironia vem do retrato satirico da belle époque do pre-guerra em meio a personagens quase que todos excentricos em seus comportamentos como o barão  sendo constantemente traido pela sedenta baronesa,o gordo grão-duque e sua prima cega(interpretada por Pina Baush,famosa bailarina artistica daquele numero em que ela sai atropelando as cadeira que está em "Fale Com Ela" do Almodóvar),os cantores de ópera(grandiosos na cena em que cantam pros operarios do navio em meio aos barulhos da caldeira e trabalhadores numa grande alegoria musical).

Na segunda parte o filme dá uma reviravolta ritmica genial com a subida à bordo de um bando de camponeses pobres turcos fugidos do exercito do Império Austro-Húngaro logo após o assassinato do arquiduque Francisco Ferdinando e o inicio da primeira guerra.
Fellini se veste de uma sutil denuncia e ironia à la Buñuel mostrando o contraste desses dois mundos.A cena em que eles comem enquanto os camponeses famintos ficam assistindo é brilhante,alêm de nos apontar quais são as reações de cada personagem...mesmo que depois das cortinas serem fechadas a unica que se prontifica a alimenta-los é a ninfomaniaca baronesa,logo encontrando um oasis do seus sonhos no rosto rude dos turcos.
 No apoteótico final em meio a vozes,tiros,mares de lona,e cenarios de estudio a camera se distancia no climax da ação pra mostrar todo o aparato do set de filmagem em um longo plano sequencia que fecha num close da camera principal do diretor.
Fica aquela sensação de vazio e pretensão,diferente de outros inumeros filmes do diretor,mas mesmo assim uma bela experiencia de poesia,humanismo e tour de force do Fellini.
Alem de ter a belissima e inebriante "Clair de Lune" de Debussy e a simbolica presença de um rinoceronte fétido e doente.