segunda-feira, 10 de setembro de 2012

"Interlúdio"(1946) - Alfred Hitchcock




"Interlúdio" é passado no Brasil,é o maior romance de Hitchcock,a maior trama de espionagem,e um de seus filmes mais completos.
Livre do produtor David O. Selznick,que vendeu o filme para a RKO,o gordinho se juntou ao roteirista Ben Hecht e juntos desenvolveram a história da mulher que se apaixona por um agente que praticamente a joga  na cama de outro,por motivos políticos de dever.A história de dois homens em lados opostos se apaixonando pela mesma mulher.Um romance de confiança e um suspense de espionagem,que usava o urânio como macguffin 1 ano depois da bomba de Hiroshima.
Ben Hecht era um dos roteiristas mais prolíficos e versáteis de Hollywood,foi o homem que botou vários personagens numa diligência em "No Tempo das Diligências"(1939) de John Ford e criou a verborragia alucinada de "Jejum de Amor"(1941) de Hawks.Numa demonstração de respeito pelo diretor,as opiniões de Hitchcock eram amplamente aceitas resultando numa história que exploraria o melhor do diretor.
Como disse Truffaut :
 "Tirando o  máximo de efeito dos mínimos detalhes,o resultado foi tão perfeito quanto um desenho animado."

Sim,o máximo do mínimo é o que se percebe desde a primeira cena no tribunal quando o pai alemão da americana Alicia(Ingrid Bergman em uma de suas melhores atuações) é condenado por espionagem nazista.Sabidamente contrária aos ideais paternos,ela é contactada pelo agente Devlin(Cary Grant)para ir ao Rio de Janeiro num trabalho de cooperação,onde acabam se apaixonando.Isso até Devlin descobrir que tem que persuadir Alicia a seduzir Alex Sebastian(Claude Rains),ex-amigo de seu pai e que é lider de um grupo de cientistas-nazi que operam escondido no Brasil.Assumindo o poder do dever acima do amor,Devlin assume uma posição fria enquanto Alicia se vê obrigada à casar com Alex e a arriscar a sua integridade física num triângulo amoroso observado pela suspeita opressora da maquiavélica mãe de seu novo marido.

Poucos cineastas da época se dedicavam tanto para extrair o máximo de cada cena,de construir um todo autoral que correspondesse com sua visão do que Hitchcock..."Interlúdio" é um exemplo disso.Estudando de forma perfeccionista cada pormenor do filme na pré-produção em  storyboards,o filme se esbalda de subterfúgios visuais: o ponto de vista bêbado de Alicia virando Cary Grant de ponta-cabeça,o reflexo do espelho retrovisor do carro,o lento envenenamento de Alicia com a xícara mostrada em primeiro plano,a presença dominadora da mãe de Alex surgindo lentamente de encontro à câmera quando desce a escada,etc...
O elemento-chave mais conhecido do filme é,sem trocadilhos,uma chave.A chave da adega que contém provas de urânio escondidas em garrafas de vinho e que Alicia tem que passar paras as mãos de um Devlin disfarçado durante uma festa na mansão de Alex,para que esse possa entrar,vasculhar e sair,antes que falte bebida e que o vilão tenha que descer para suprir o estoque.Numa famosa cena a câmera se aproxima lentamente de cima e vai descendo até a mão nervosa de Alicia  segurando a chave.

O brilhantismo da atuação de Rains está no carisma que ele passa mesmo sendo um nazista.O seu amor é verdadeiro,a sua decepção é verdadeira,as suas nuances são variadas,e o seu medo é exasperador na cena final.A mãe dominadora,um dos aspectos freudianos mais recorrentes em Hitchcock,tem a sua primeira grande presença nesse filme abrindo mais uma etapa do psicossexual em filmes.
O que mais me impressionou portanto foi o modo erótico que Hitchcock retrata a paixão de Devlin e Alicia com o uso constante de closes e jogos de luz e sombra em meio a beijos e amassos.O Codigo Hayes permitia só 3 segundos de beijo num filme,Hitchcock filma 2 minutos e meio de beijo,usando 3 segundos de beijo intercalados por narigadas e assim vai....O fato da confiança quebrada,da resignação face ao inevitável em meio ao tumulto do ciúme,torna essa produção um filme quente,com o tão conhecido clima  brasileiro servindo de afrodisíaco para um triângulo de díspares paixões.



"Crisântemos Tardios"(1939) - Kenji Mizoguchi




Arrisco dizer que junto com filmes de 1939 como "Stagecoach" e "A Regra do Jogo" ou que ainda seriam lançados nos próximos dois anos como "Rebecca" e "Cidadão Kane","Crisântemos Tardios" é um dos filmes mais influentes do cinema moderno e um dos grandes pioneiros a surgirem nessa virada de década.O ruim é que o cinema oriental ainda tinha pouca visibilidade no Ocidente até "Rashomon" de Kurosawa abrir as portas,e Mizoguchi ser redescoberto por Jacques Rivette na Cahiers du Cinemá.Mesmo que à frente do seu tempo,os trabalhos mais reconhecidos do diretor viriam com "Contos da Lua Vaga"(1953) e "O Intendente Sansho"(1954).Um artista quase que completo,o diretor era perito em teatro Kabuki e Noh e "Crisântemos Tardios" é um dos melhores filmes sobre o teatro.

No século XIX,o jovem ator Kikonosuke se recente de não ter o mesmo talento que seu glorioso pai adotivo.Bajulado  pela fama que tem devido o parentesco,pelas costas ele é ridicularizado pelos amigos e é tido como sem-futuro aos olhos de seu pai.É quando se apaixona pela criada Otoku - franca como ninguêm e disposta a ajudá-lo em seu treinamento.Como sua família se opõe ao namoro,Otoku é demitida e some enquanto Kikonosuke foge de casa em busca de uma reviravolta.É quando ele reencontra Otoku,e juntos partem para uma vida de casado numa trajetória por trupes e hospedarias que dura anos de dificuldades,desavenças e tragédias,com a mulher se mostrando a base estrutural para o sucesso do marido,nunca deixando que o desânimo o abrace na busca pelo aperfeiçoamento de sua arte.

Um conto romântico e sensível,Mizoguchi dá uma liberdade às personagens femininas pouco vista na época,principalmente no Japão.Longe de ser apenas feminista contemporâneo,o fato de a sociedade retratada ser de 1885 mostra que a intenção de Mizoguchi é só situar a mulher no lugar em que ela sempre teve.Tomando as dores femininas para si,o diretor exorcisa fantasmas de sua mente,da época em que quando criança seu pai batia na sua mãe e sua irmã foi vendida para um bordel.Essa defesa do papel feminino exaltado em todas as eras é uma recorrente de sua filmografia e um dos motivos temáticos principais de sua influencia.

Tecnicamente  é que Mizoguchi se mostra um puta contador de histórias.De forma visionária ele usa ostensivamente de long-shots que,longe de serem exclusivamente estáticos ou contemplativos,usam e abusam de movimentos de câmera e tracking-shots onde os personagens coreograficamente percorrem os cenários e interagem numa construção de mise-en-scéne absolutamente emocional e realista.Planos abertos ressaltam uma fotografia sterbergiana com lâmpadas cuidadosamente distribuídas iluminando expressivamente o cenário.O modo como Mizoguchi filma as cenas do teatro são de uma reverência que ultrapassa o ego do diretor chegando até nós.É essa mise-en-scène que tridimensionaliza os personagens,superlativizando o tocante final que alegoriza com a flor do crisântemo que  morre no final do outono com o triunfo da primavera.
Um filme pra quem subestima a máxima de que por trás de todo o grande homem existe uma mulher.Um filme para quem ama ou já amou,e acredita na dedicação e no triunfo através desta.Talvez o maior dos filmes de amor.Talvez um poema.

Tracking-shot de Mizoguchi mostrando o primeiro encontro do casal protagonista:



"As Três Noites de Eva"(1941) - Preston Sturges




Preston Sturges começou na Broadway e virou roteirista em Hollywood,muito bem pago por sinal.Mas apesar do alto salário,como todo grande artista verdadeiro,o modo como seus escritos eram dirigidos não lhe satisfaziam,tomando logo as rédeas da direção.Seu terceiro filme nessa posição de auteur foi "As Três Noites de Eva"" que estava três passos à frente da conservadora América do início dos anos 40,não só em seu diálogo abertamente sexy,como no modo rebelde em que ele se utiliza da narrativa cinematográfica.Diferenciado de seus colegas ilustres de screwball comedy(comédia pastelão) como Hawks e McCarey,que colocavam sua versatilidade a favor dos gêneros,Sturges baixava a cabeça na escrivaninha e criava algo que conseguia não contrabalancear,mas misturar surrealmente o escracho com a paródia,a sátira humana com a ironia cômica.O seu modo de usar as ferramentas do cinema em harmonia com o ritmo do timing da comédia seria o início de estilos que muitos seguiriam ainda no cinema,como Woody Allen (principalmente até "Annie Hall").Um dos filmes mais inspirados pelo estilo é "Arizona Nunca Mais".Assim como no filme dos Coen, a intenção é ser ininterrupto em deboche usando da edição para ressaltar o hilário dos personagens.Esse clima lúdico para adultos se fortalece nos truques visuais(como quando Jean Harrington observa pelo reflexo do espelho a reação de Charles Pike com as mulheres à sua volta),lembrando que o clima de cartoon tem que se manter como condutor da mensagem.

Jean Harrington(Barbara Stanwick,mais tesuda que em "Pacto de Sangue") é uma vigarista que junto com seu pai e um amigo,encontra o herdeiro Pike(Henry Fonda provando uma versatilidade imensa)num navio e o escolhe como a próxima vítima.Acontece que ela se apaixona...ele descobre o plano,a rejeita...e ela volta para se vingar de um jeito inacreditável.
O mais sensacional é a libido que carrega o filme, Sturges coloca a mulher como a dominadora que corrompe e instiga o homem a tomar a atitude através do jogo sexual.O personagem de Fonda é um mané,um playboy nerd obcecado por cobras(!!!???),que recusa todos os avanços das garotas que constantemente o seduzem pelo seu dinheiro e vive num aspecto tenso/atrapalhado angustiante.Quando Jean entra na vida dele,a coisa toma outro sentido com o suor escorrendo de sua testa subjugado por uma sensualidade erótica imensa.Stanwick era a mulher das mulheres e o seu brilhantismo é imenso em "As Três Noites de Eva",chegando a ganhar sotaque inglês numa reviravolta que sua personagem toma no desenrolar dos fatos.
Henry Fonda já tinha sido Lincoln e cowboy fordiano,mas mesmo assim convence como o pateta da "barraca armada".

Sturges era fodão,o set de filmagem era um carnaval,uma família num convivío intenso com seus atores que refletem bem a leveza e liberdade do filme.Casado quatro vezes,o auteur não tinha papas na caneta nem na câmera para lançar em frases e gags a sua ironia social.Escreveu esse roteiro lascivo e apaixonadamente feminista(tirando como base um livrinho de 20 páginas do dramaturgo inglês Mockton Hoffe) no divórcio de seu terceiro casamento,não poupando alfinetadas para o sexo oposto ao mesmo tempo que coloca a mulher como a origem do homem em todos os sentido.Com ele não tinha família,igreja e  nem american way of life,era o homem/mulher/sexo,o namoro e o amor livre.E isso que o roteiro teve que ser revisado para ser aprovado pelo Código Hayes,que se incomodou justamente pelo gosto por cobras do protagonista e pela "gratuita" referência ao ato sexual sem valores morais intrínsecos.
"As Três Noites de Eva" era a liberdade sexual em 1941...vejam bem...em 1941,duas décadas antes do início dos libertadores anos 60,quando a Segunda Guerra estava apenas começando.É a malícia inteligente dos créditos iniciais até o momento em que,numa cena absolutamente ousada para a época,Pike arrasta desesperadamente Jean para o quarto do navio,não se importando com ninguém em volta,mostrando para ela o que já deveria ter mostrado à tempos.Adoro tapas na cara da hipocrisia e "As Três Noites de Eva" foi um dos mais importantes do cinema.