quinta-feira, 20 de setembro de 2012

"Terror nas Trevas"(1981) - Lucio Fulci



O horror nasceu com o romantismo gótico?Muitos dizem que sim.Livros góticos como "O Castelo de Otranto"(1764) de Horace Walpole,"Frankenstein"(1818) de Mary Shelley,"O Médico e o Monstro"(1886) de Robert Louis Stevenson e "Drácula"(1897) de Bram Stoker estão como pioneiros de um gênero que ressucita mortos e lidam de forma metafísica com o limbo desconhecido entre a vida e a morte.E isso só pra citar os que eu li.Mas o horror sempre esteve presente no folclore antropológico de todas as tribos humanas encontráveis no mundo.Desde os deuses da guerra,passe pelas mulas-sem-cabeça,lobisomens,duendes do mal,...O sobrenatural metafísico expôs a fragilidade da carne e a angústia existencial humana desde Sócrates,Platão e Aristóteles.A existencia de outro plano independente da existência de Deus ou não sempre esteve como âmbito das discussões sociais mais arcaicas.

No começo do século XX o teatro de vanguarda aliado ao surrealismo começou a lidar com a fragilidade carnal e os sentimentos genuínos de medo que a arte podia oferecer.Porque a arte acima de tudo é expressão de todos as emoções humanas possíveis incluindo o medo,o desespero,a angústia,o terror e o horror,para gerar reflexões através da perturbação sensitiva,reflexões sobre nós como carne e espírito.O Manifesto Surrealista foi lançado em Paris em 1924 por André Breton e a característica fundamental do movimento era o fascínio por Sigmund Freud que dizia que o estado irracional da vigília human era torpe e podia libertar tanto a criança quanto o selvagem existente em nós.Sendo assim,de forma anárquica os surrealistas negavam a razão na arte.Mas não negavam a lógica como o Dadaísmo de Tristan Tzara,eles apenas substituiam a lógica do real pela lógica dos sonhos freudianos,da análise mental e da estimulação emocional pelos instintos primários.Por isso o sexo,a nudez,a violência e o olho cortado ao meio em "Cão Andaluz" de Luis Buñuel,só pra citar o primeiro exemplo de surrealismo no cinema.Nesse contexto surgem o Teatro de Grand Guignol em 1897 dedicado exclusivamente ao gênero horror que moderniza o sangue e o gore populares desde "Titus Andronicus" de Shakespeare e que na ascenção surrealista teria seu auge de popularidade.

É importante ressaltar esse contexto histórico porque existem muitos erros na forma como o cinema de Lucio Fulci é visto e analisado  até mesmo pelos próprios fãs.Fulci não era um moleque que jogava perversão na tela na forma de terror divertido de grindhouses.Ele era um artista com uma visão abrangente,um senhor culto que amava o surrealismo e que trabalhou como crítico de arte."Terror nas Trevas" é a síntese de seu objetivo artístico.O filme seria uma homenagem à Antonin Artaud,um desses vanguardistas franceses do surrealismo,que criou o "Teatro da Crueldade" onde todo o elemento sonoro,cênico e de iluminação estaria à favor da manipulação da audiência não como forma de sadismo mas para,nas palavra do próprio Artaud,restaurar ao teatro uma passional e convulsiva novidade na concepção de vida.O Teatro da Crueldade colocava o espectador como participante ativo da narrativa,e todas essas qualidades artaudianas são transformadas em cinema em "Terror nas Trevas",transformando uma produção de baixo orçamento no maior exemplo de horror pós-moderno.

Lucio Fulci está acima de rótulos e também esta cima de qualquer sentimento nostálgico de infância regada por sessões diurnas de cine-trash."Terror nas Trevas" está acima de qualquer crítico pseudo-intelectual que tenta defende-lo e não sabe como,usando de simplismos como "a intenção dele é o ilógico","retrato de um pesadelo","atmosférico" etc."Terror  nas Trevas" é uma obra de arte completa,onde todos os elementos fílmicos são harmoniosamente colocados em prol da emoção não como exercício de estilo,mas para cumprir com sua intenção "cruel".Trabalho de câmera,trilha sonora,atuações,tudo converge para o mesmo objetivo freudiano onde o medo infantil é contrabalanceado com o selvagem da violência carnal.E claro há todo um conceito pulp tanto na literatura  de magazines como na edição estéticamente cartunesca,ou até mesmo no legado de Sergio Leone em mise-en-scènes de jogos de closes de silêncio,na trilha morricônica macarrônica e na interação propositalmente  camp dos atores que ressaltam não o ilógico como muitos defendem,mas a lógica do tema do desespero humano nas ondas surreais disconexas de um pesadelo.O filme abraça juntamente com o já citado conceito surrealista freudiano e a crueldade do teatro de Artaud,o horror das pulp fictions que surgiram na primeira metade do século com o o niilismo sem fé e desesperado de H.P. Lovecraft.Isso fica claro no uso do Livro de Eibon no filme,criado por Clark Ashton Schmidt e usado por ele e o Lovecraft em diversas edições da revista "Weird Tales" na década de 20 e que retratavam a fantástica mitologia Cthulhu.

Fucci usa do controle autoral abrangente para promover a participação voyeurística do espectador em travellings,câmera subjetiva,jogo de campos,enquadramentos e ballets de angulações sempre de caráter simbólico ou informativo como no inicio deslumbrante em sépia com a edição brincando com o quadro pintado por Sweick(pintor que descobre a chave para o portal do inferno) e com a sua própria condenação em momentos contemplativos de sangue e dor.Edição que fará um constante jogo de terror versus serenidade como quando o olho do encanador é extirpado de sua órbita cortando repentinamente para o silêncio da estrada,na incrível cena em que a personagem Liza encontra a garota cega.Uma criança vendo o cadáver de seu pai(o encanador) no necrotério ao mesmo tempo que tem que assistir o corpo de sua mãe se decompondo com ácido;cercada pelo horror ela abre a única porta disponível e se depara com mais cadáveres,com Fulci finalizando com um grito em freeze-frame e cortando para a sofisticação de um clube de jazz onde já de inicio ele usa o jogo de foco de campo e contra-campo com o rosto de Liza e a banda no background.Juntamente com esse todo conceitual está a edição sonora no barulho do carrinho no corredor do hospital,o coro fantasmagórico das tarântulas, a água e os canos no porão do hotel e os gemidos dos zumbis.A trilha sonora de Fabio Frizzi é brilhante e climática num feliz matrimônio estilístico e autoral com o diretor,levando adiante o poder psicológico/temático que Herrman e Morricone impuseram ao cinema com frases tensas de piano,coros infernais,sopros exultantes(nos créditos a trilha anuncia o início de uma nova abordagem) e acelerações rítmicas(principalmente nos momentos mais violentos).

Apesar de ter feito grandes trabalhos autorais e honestamente artísticos,Fulci morreu pobre,doente e renegado à "midnights sessions".A hipócrita crítica de cinema do pós-guerra capitalista simplesmente nega os lados mais obscuros da mente humana,nega Freud,nega os grandes movimentos artisticos do seculo XX para defender uma suposta esperança hipócrita.Dizer que tal esperança deve estar sempre presente na arte é por fim negar o próprio ser-humano,visto que desde a Idade das Pedras as manifestações artísticas são retrato das emoções humanas,sem se preocupar com pré-conceitos ou em esconder o horror da fragilidade material da carne humana em prol de uma utópica sociedade.É essa negação e falta de visão abrangente que faz com que gente coxinha como Roger Ebert faça questão de ir em programas televisivos para condenar o niilismo e a violência no cinema,como se isso fosse feito por seres anormais perversos ou adolescente punheteiros."Além das Trevas" não é sangue e carne dilacerada jogada de forma aleatória por pleno sadismo de distúrbios psicossexuais,é um artefato fílmico com um objetivo eficiente para aqueles que conseguem enxergar a arte acima do pré-conceito.Então muito cuidado quando forem falar mal de algo que não seja favorável ao mundinho pequeno ao qual estão enclausurados,porque pessoas informadas podem simplesmente te desarmar.Não trate o horror como uma coisa passageira,como um orgasmo fugaz.O horror é a faceta mais antiga do homem desde que Odisseu massacrou os pretendentes de Penélope no épico de Homero ou quando Jesus e Fausto sofreram intervenções de Satã.O horror está no subconsciente de cada um de nós,e cabe a nós deixar esse sentimento ser explorado por artesões psicanalistas competentes...e Lucio Fulci mostrou com "Terror nas Trevas",ter sido um dos grandes.

"Brother"(2000) - Takeshi Kitano





Em "Brother" Takeshi  é Aniki,um funcionário da Yakuza que se envolve em uma briga de famílias e vê a morte de seu chefe seguida da submissão covarde de seu irmão que corta o próprio dedo para demonstrar fidelidade ao inimigo.Nessa perda de lealdade fraternal e de honra mafiosa na Yakuza,Aniki desce em Los Angeles para encontrar seu outro irmão,o mais novo e que deveria estar longe do crime,enrolado com uma gang de bandidinhos que vendem drogas na esquina  e que não possuem atitude para comandar no crime.Assumindo as rédeas,Aniki não enxerga freios,e na tentativa de montar uma outra associação fraterna dessa vez bem sucedida ele vai eliminado os rivais facilmente até ter que se defrontar com os italianos.Montando sarcasticamente uma hierarquia criminosa,Kitano põe a Yakuza como uma decadente rixa de amostras de honras superficiais,os negros americanos como irresponsáveis,os hispanos como irrelevantes e demonstra uma certa reverência para a secular Mafia italiana.Com o sentido de família mais uma vez destroçado por mais um irmão covarde em frente ao destino,o verdadeiro "brother" acaba sendo o cupincha Denny(Omar Epps),negro desbocado que sofreu uma garrafada no olho de Kitano logo de chegada.


"Brother" não conseguiu me extasiar como "Hana-Bi",mas é Kitano violentamente  melancólico e irônico.Kitano não surgiu  como um cineasta antropofágico típico do início dos anos 90,ele foi matéria-prima original assimilado pela antropofagia.Aliás...Kitano nem surgiu como cineasta,surgiu como comediante stand-up,polêmico por gozar da sociedade e dos "marginais" sem perdoar idade,crença,beleza,status.Foi proibido de entrar em emissoras de tv.Teve um programa de tv.Escreveu romances ,poesias e livros sobre cinema.Pintou aquarelas..."Hana-Bi" por favor.Mais uma coisa...Takeshi Kitano na verdade é Beat Takeshi e vice-versa.No cinema Kitano brinca com a Yakuza e com a morte que convive ao seu lado,niilista com sorrisos de sarcasmo.Mas também pode ser suave e família ou se auto-ironizar.


 Com tudo isso,Kitano É a cultura japonesa...se bobear Kitano É o Japão moderno.Duvida?Então ponha "Glória ao Cineasta"(2007) para rodar.Kitano não surgiu com o cinema,o cinema como a arte completa engloba todas as suas facetas.Assumindo total controle da obra,Kitano dirige,atua,edita.Na verdade ele faz mais que atuar...ele cria uma persona,um Eastwood Yakuza,um Yoshimbo de terno e óculos escuros.Um dos maiores autores a surgir no cenário japonês pós-moderno junto com Juzo Itami.
Em "Brother" Kitano joga com honra,fidelidade,valores e família.Mostra que é tão duro Caim matar Abel quanto deixar Abel às traças.Nessa desilusão a América se mostra como o palco do mergulho de Aniki na violência,com a passividade de sua personalidade profetizando o teste mortal de honra.Denny e a perda da família entra em sintonia com a alma de Aniki,o que causa o ato de gratidão final e a atitude de entrega da vida ao inimigo,até porque a vida é carne e vazio sem o laço familiar.Através da aridez poética da narrativa,de montagem com sinapses violentas e longos planos estáticos de vida corrente e real de convívio, Kitano monta esteticamente o desespero moderno mostrando a vida como uma comédia perversa...e prova ser um cara que conhece as ruas e seu desesperançoso ecossistema,independente da nacionalidade dessa rua.