quinta-feira, 27 de setembro de 2012

"Army of Darkness"(1992) -Sam Raimi



Conhecido no Brasil como "Uma Noite Alucinante 3",é importante ressaltar o título original pois comprova o distanciamento da abordagem em relação à "Evil Dead"(1981) e "Evil Dead 2"(1987).Enquanto o primeiro foi uma obra-prima do trash que literalmente tocou horror em Cannes,uma aula de cinema e de técnica de manipulação emocional;o segundo consegue afundar o anti-herói Ash(Bruce Campbell) num universo de horror ainda mais assustador com o uso de efeitos mais elaborados provindo da frouxa produção já concedida para Sam Raimi,e equilibrando o humor com o terror com uma maestria que seria difícil de se igualar em tristes tentativas vindouras.Em "Evil Dead 2" Raimi incorpora o seu amor pelo humor slapstick ao gore,mas impossibilitado pelo ainda baixo orçamento,não conseguiu seguir a sua vontade de colocar Ash na Idade Média,usando de um sensacional e ambíguo epílogo que ficou como gancho para a possível seqüencia.
Sam Raimi decidiu,já com grana, passar para a tela o espírito das histórias em quadrinhos em "Crimewave"(1985),uma associação com os Coen onde a falta de sucesso veio da primeira experiência com a intervenção de produtores no seu conceito.Impossibilitado de adquirir os direitos do personagem pulp dos anos 30 "O Sombra"(que viraria filme com Alec Baldwin),ele decide criar o seu próprio herói em homenagem aos filmes de horror da Universal no ótimo "Darkman"(1990).

É com esse espirito de comic-magazine e com o dinheiro obtido com o sucesso de "Darkman" que Raimi consegue criar um universo paralelo com "Army of Darkness",pegando o promissor personagem Ash e definitivamente o transformando num ícone,dentro de um dos maiores exemplos do "terrir" de qualidade dos anos 90.Comparar com os outros filmes da franquia,que continham um poder low-budget autoral e uma claustrofobia monocênica que possibilitava o uso extensivo das piruetas técnicas do diretor em construção de climas e sustos,seria injusto com o "Army of Darkness",que apenas usa a força do carisma de Bruce Campbell e dos elementos que dão continuidade à trama para  mostrar o que Raimi realmente poderia fazer com um alto orçamento,se mostrando como um dos grandes tradutores em película do universo dos quadrinhos,que resultaria mais tarde em sua escolha para assumir o controle de Spider-Man,sendo  "Homem Aranha 2" um dos melhores exemplos de uma adaptação de super-heróis transformada em arte."Army of Darkness" é um daqueles filmes que ficaram numa época,e que mesmo que continue delicioso e divertido ainda hoje,não poderia ser refeito com o mesmo charme - vide "Arraste-me para o Inferno"(2009).

O uso de Introvision que transforma mitologicamente o rico cenário e as atuações propositalmente out-of-the-real com a  canastrice heróica de Bruce Campbell conseguem manter o clima do filme não pelo medo que o espectador possa ter,mas pelas desventuras do protagonista,que amadurecendo após apanhar tanto dos demônios,adquire um caráter badass com a mão amputada substituída por uma moto-serra e uma invejável habilidade de manuseio de carabinas com a mão esquerda.A direção frenética e imaginativa se funde com a alma pulp de terror/cômico com Ray Harryausen sendo homenageado à altura com o exército de esqueletos que interagem de forma surreal com os humanos,fazendo jus ao estado puro de arte cinematográfica de filmes como "Jasão e os Argonautas"(1963).Ainda uma carta de amor à cultura pop,o filme não tem medo de referências abruptas à clássicos  da literatura como "Viagens de Gulliver" ou "Um Americano na Corte do Rei Arthur" misturados à famosa gag do "dedo-no-olho" dos Três Patetas e à frase klatu barata niktu de "O Dia em Que a Terra Parou" .Bruce salva qualquer cena da displicência inútil embarcando com Ash o cerne psicológico da criação de qualquer herói de HQs,com a cena final no supermercado o igualando na dicotomia homem comum/super-herói com um simples funcionário de super-mercado deixando de ser o tedioso nerd rotineiro para se tornar rei ao seu jeito.Clássico.


terça-feira, 25 de setembro de 2012

"Sexta-Feira 13"(1980) - Sean S. Cunningham



  
 
Antes de Tobe Hooper surgir com "O Massacre da Serra Elétrica"(1974) e Carpenter sonhar em dirigir "Halloween"(1978),Cunningham dirigia sexploitation e filmes com característica lixão.Em 1972 ele produziu "Aniversário Macabro",dirigido pelo amigo Wes Craven,e que dentre todas aquelas produções seria a única a realmente apresentar uma mensagem irônica em relação à decadente filosofia hippie defronte da crueza dos anos 70."Aniversário Macabro" está entre aqueles filmes representantes de uma época,um abridor de portas para o terror real escondido por trás de libertárias canções folk
Apesar disso,foi obviamente o sucesso do filme de Carpenter que o levou a querer a criar uma montanha-russa de horrores seguindo o mesmo molde de serial killer.Enquanto "Halloween" criava algo novo usando um balde de referências que ia de "Psicose" à trilha sonora de "O Exorcista","Sexta Feira 13" usa o próprio "Halloween" como referência,principalmente com "Psicose"(de novo!),"Tubarão", "Carrie" e o giallo italiano.

A introdução já é uma homenagem ao filme de Carpenter,com a manjada câmera subjetiva mostrando um crime do assassino.Mas é com "Psicose" que o roteirista de novelas Victor Miller brinca mais,subvertendo os elementos mais memoráveis do filme de Hitchcock.O filme começa acompanhando uma estudante que vai descolar um bico no acampamento que falsamente parecer ser a personagem principal para logo ser eliminada...como a Marion Crane de Janet Leigh.Dessa vez não é o filho que incorpora a personalidade da mãe morta,mas é a própria mãe que busca vingança pela morte de seu filho Jason que morreu afogado no lago do camping Crystal Lake no qual ela trabalhava como cozinheira.E é aí que entra um dos maiores paradoxos da cultura pop.Aquele psicopata de máscara de hoquei que sai matando com um facão ja nasceu morto,e simplesmente inexiste na mente criadora da série em seu primeiro filme,tanto na de Cunningham quanto na de Miller,ressucitado em filmes seguintes como uma ferramenta caça-níquel.Claro que existe o horripilante gancho-final derivativo de "Carrie",mas foi uma idéia de Tom Savini,o maquiador de Romero que se esbalda em sua arte de extrair efeitos de horror que podem te fazer rir como gritar,e que acabou sendo o verdadeiro responsável pela materialização de Jason.
O que justamente acaba enfraquecendo o filme e que deveria ser seu momento mais forte é a revelação do vilão,a atuação de Betsy Palmer que tinha aceitado o papel para poder pagar contas,e que se revela uma senhora frágil demais apesar de insana,e incapaz de cometer assassínios tão musculosos.Por isso que eu afirmo que "Sexta-Feira 13" é bom só até a aparição de Palmer,que se salva pelos closes nervosos que Cunningham dá em sua boca escancarada.

Mas o que faz o filme ser bom além de divertido?Primeiro é a forma como o diretor conduz o suspense,que está longe de insultar a inteligência.Arrisco dizer que ele vai além de Carpenter,usando de movimentos de câmera que te colocam mais do lado dos personagens,atento com o background para ansiosamente avistarmos o sinal do vilão nas costas das garotas gostosas indefesas.Da onde ele vai surgir?Como ele vai matar agora?Tape os olhos!Apesar de extremamente eficiente,a trilha sonora poderia ser até acusada de pastiche de "Tubarão" com Bernard Herrmann.Mas a trilha de Carpenter para "Halloween" também era.O que salva as duas é o diferencial,o ponto de autenticidade.Enquanto Carpenter se salva por criar um icônico riff num tecladinho com uma simples escala de notas,Harry Manfredini resolve colocar sussuros que atingem  a subjetividade da mente do psicopata antes mesmo dele ser revelado."Kill Mother!" ou "ki ki ki ma ma ma".Absolutamente brilhante.

E quanto aos argumentos retrógados dos conservadores que iam de encontro ao sexo,à violencia e às drogas?
Primeiro: sexo não é gratuito,é apenas sexo,se isso já tinha sido deixado bem claro nos anos 60,em 1980 já devia ter sido assimilado.E jovens não só vão,como devem ir para acampamentos para foder...essa é a razão da adolescência.
Segundo: jovens consumindo maconha são jovens drogados?Ah...por favor heim...até Shakespeare  fumava.Jovens devem ir acampar não só para foder,mas para fumar maconha.
Terceiro:a violência e o gosto de se sentir medo é uma faceta humana,e deve ser explorada pela arte sem hipocrisia,como uma extensão emocional de um trem-fantasma.
 Os críticos Roger Ebert e Gene Siskel foram publicamente chamar Cunningham de lixo,dizer que tais filmes faziam o público se associar ao monstro e que não deveriam ser assistidos.Siskel chegou ao ponto de expor o endereço de Betsy Palmer para que escrevessem cartas de insatisfação à ela.Esse tipo de atitude fascista só mostra que críticas de arte de alcance conservador podem ser mais ridículas e nocivas que qualquer produção b do cinema,e o quanto a confiança do público nessas críticas deve ser reavaliada,assim como o papel da crítica,que está se tornando cada vez mais banal.

sexta-feira, 21 de setembro de 2012

"Viagens Alucinantes"(1980) - Ken Russell



"Viagens Alucinantes" é um daqueles filmes que devem ser vistos em tela grande.Um dos espetáculos visuais mais impressionantes,letárgicos e psicodélicos do cinema.Só que há um porém.Aprecia mais quem já teve sob influência de drogas psicoativas.Não adianta dizer que não...é uma realidade.Ken Russel foi um dos grandes diretores a colocar o psicodélico em imagens cinematográficas,como em "Tommy",que se baseia no álbum conceitual do The Who,clássico do rock pós-67.Suas cinebiografias sobre compositores guardam uma ligação de estados alterados com a música.E não é só isso,ele tinha uma conceitualização artística em seus filmes que davam uma liberdade à câmera e aos personagens em narrativas de uma pungência áudio-visual incrível.

Baseado nos experimentos do cientista John C. Lillys, o filme conta a busca obssessiva do professor de psicologia Jessup(William Hurt em seu debut)pelo estado puro da consciência humana,na tentativa de provar o quanto os estados alterados da  mente podem constituir uma realidade tão verdadeira quanto o nosso estado normal,trancado em tanques de isolamento.Ele decide viajar para o México para fazer uma experiência tribal com Ahayuasca(uma erva alucinógena) e após sofrer uma viagem única de estado alterado de consciência,ele volta com a droga para os EUA e começa a fazer testes sobre o efeito dela nos tais tanques,até que progressivamente a sua genética humana vai regredindo ao homem-primata em direção à um estado de proto-consciência,de origem da vida.Baseado num livro de Paddy Chayefsky,o premiado roteirista de "Marty"(1955),seus personagens agem alienadamente em diálogos bem construídos que vagueiam pelos delírios místicos de Jessup e explicações científicas-filosóficas sobre sua busca e como sua obsessão pelo trabalho prejudica a sua humanidade e família.

As cenas surreais editadas poeticamente dos delírios de Jessup são de uma lindeza impressionante com um trabalho de edição de som magnífico e a trilha sonora de John Corigliano indo de forma angustiante do horror ao fantástico.E é aí que entra um facto:de que o filme é melhor compreendido sobre drogas psicoativas.Somente quem já atingiu o estado alterado da consciência uma vez na vida vai se sentir como Jessup,que não presta atenção ao seu amigo Manson,respeitado médico que nega as causas da experiência por causa de um suposto perigo.Todos os medos de infância de Jessup e sua negação de Deus após a morte do pai se fundem com sexo,demônios e fogo numa montanha russa de imagens sonoras.Junto com "Medo e Delírio" de Terry Gilliam,esse é um dos poucos filmes que conseguem retratar em arte cinematográfica o delírio extra-sensorial das drogas.A cena em que Jessup vira matéria cósmica e é resgatado heróicamente por sua mulher é de um poder tão impressionante quanto as idéias que Douglas Trumbull deu para Kubrick retratar o portal de estrelas de Júpiter em "2001",uma óbvia inspiração.De deixar de boca seca.


quinta-feira, 20 de setembro de 2012

"Terror nas Trevas"(1981) - Lucio Fulci



O horror nasceu com o romantismo gótico?Muitos dizem que sim.Livros góticos como "O Castelo de Otranto"(1764) de Horace Walpole,"Frankenstein"(1818) de Mary Shelley,"O Médico e o Monstro"(1886) de Robert Louis Stevenson e "Drácula"(1897) de Bram Stoker estão como pioneiros de um gênero que ressucita mortos e lidam de forma metafísica com o limbo desconhecido entre a vida e a morte.E isso só pra citar os que eu li.Mas o horror sempre esteve presente no folclore antropológico de todas as tribos humanas encontráveis no mundo.Desde os deuses da guerra,passe pelas mulas-sem-cabeça,lobisomens,duendes do mal,...O sobrenatural metafísico expôs a fragilidade da carne e a angústia existencial humana desde Sócrates,Platão e Aristóteles.A existencia de outro plano independente da existência de Deus ou não sempre esteve como âmbito das discussões sociais mais arcaicas.

No começo do século XX o teatro de vanguarda aliado ao surrealismo começou a lidar com a fragilidade carnal e os sentimentos genuínos de medo que a arte podia oferecer.Porque a arte acima de tudo é expressão de todos as emoções humanas possíveis incluindo o medo,o desespero,a angústia,o terror e o horror,para gerar reflexões através da perturbação sensitiva,reflexões sobre nós como carne e espírito.O Manifesto Surrealista foi lançado em Paris em 1924 por André Breton e a característica fundamental do movimento era o fascínio por Sigmund Freud que dizia que o estado irracional da vigília human era torpe e podia libertar tanto a criança quanto o selvagem existente em nós.Sendo assim,de forma anárquica os surrealistas negavam a razão na arte.Mas não negavam a lógica como o Dadaísmo de Tristan Tzara,eles apenas substituiam a lógica do real pela lógica dos sonhos freudianos,da análise mental e da estimulação emocional pelos instintos primários.Por isso o sexo,a nudez,a violência e o olho cortado ao meio em "Cão Andaluz" de Luis Buñuel,só pra citar o primeiro exemplo de surrealismo no cinema.Nesse contexto surgem o Teatro de Grand Guignol em 1897 dedicado exclusivamente ao gênero horror que moderniza o sangue e o gore populares desde "Titus Andronicus" de Shakespeare e que na ascenção surrealista teria seu auge de popularidade.

É importante ressaltar esse contexto histórico porque existem muitos erros na forma como o cinema de Lucio Fulci é visto e analisado  até mesmo pelos próprios fãs.Fulci não era um moleque que jogava perversão na tela na forma de terror divertido de grindhouses.Ele era um artista com uma visão abrangente,um senhor culto que amava o surrealismo e que trabalhou como crítico de arte."Terror nas Trevas" é a síntese de seu objetivo artístico.O filme seria uma homenagem à Antonin Artaud,um desses vanguardistas franceses do surrealismo,que criou o "Teatro da Crueldade" onde todo o elemento sonoro,cênico e de iluminação estaria à favor da manipulação da audiência não como forma de sadismo mas para,nas palavra do próprio Artaud,restaurar ao teatro uma passional e convulsiva novidade na concepção de vida.O Teatro da Crueldade colocava o espectador como participante ativo da narrativa,e todas essas qualidades artaudianas são transformadas em cinema em "Terror nas Trevas",transformando uma produção de baixo orçamento no maior exemplo de horror pós-moderno.

Lucio Fulci está acima de rótulos e também esta cima de qualquer sentimento nostálgico de infância regada por sessões diurnas de cine-trash."Terror nas Trevas" está acima de qualquer crítico pseudo-intelectual que tenta defende-lo e não sabe como,usando de simplismos como "a intenção dele é o ilógico","retrato de um pesadelo","atmosférico" etc."Terror  nas Trevas" é uma obra de arte completa,onde todos os elementos fílmicos são harmoniosamente colocados em prol da emoção não como exercício de estilo,mas para cumprir com sua intenção "cruel".Trabalho de câmera,trilha sonora,atuações,tudo converge para o mesmo objetivo freudiano onde o medo infantil é contrabalanceado com o selvagem da violência carnal.E claro há todo um conceito pulp tanto na literatura  de magazines como na edição estéticamente cartunesca,ou até mesmo no legado de Sergio Leone em mise-en-scènes de jogos de closes de silêncio,na trilha morricônica macarrônica e na interação propositalmente  camp dos atores que ressaltam não o ilógico como muitos defendem,mas a lógica do tema do desespero humano nas ondas surreais disconexas de um pesadelo.O filme abraça juntamente com o já citado conceito surrealista freudiano e a crueldade do teatro de Artaud,o horror das pulp fictions que surgiram na primeira metade do século com o o niilismo sem fé e desesperado de H.P. Lovecraft.Isso fica claro no uso do Livro de Eibon no filme,criado por Clark Ashton Schmidt e usado por ele e o Lovecraft em diversas edições da revista "Weird Tales" na década de 20 e que retratavam a fantástica mitologia Cthulhu.

Fucci usa do controle autoral abrangente para promover a participação voyeurística do espectador em travellings,câmera subjetiva,jogo de campos,enquadramentos e ballets de angulações sempre de caráter simbólico ou informativo como no inicio deslumbrante em sépia com a edição brincando com o quadro pintado por Sweick(pintor que descobre a chave para o portal do inferno) e com a sua própria condenação em momentos contemplativos de sangue e dor.Edição que fará um constante jogo de terror versus serenidade como quando o olho do encanador é extirpado de sua órbita cortando repentinamente para o silêncio da estrada,na incrível cena em que a personagem Liza encontra a garota cega.Uma criança vendo o cadáver de seu pai(o encanador) no necrotério ao mesmo tempo que tem que assistir o corpo de sua mãe se decompondo com ácido;cercada pelo horror ela abre a única porta disponível e se depara com mais cadáveres,com Fulci finalizando com um grito em freeze-frame e cortando para a sofisticação de um clube de jazz onde já de inicio ele usa o jogo de foco de campo e contra-campo com o rosto de Liza e a banda no background.Juntamente com esse todo conceitual está a edição sonora no barulho do carrinho no corredor do hospital,o coro fantasmagórico das tarântulas, a água e os canos no porão do hotel e os gemidos dos zumbis.A trilha sonora de Fabio Frizzi é brilhante e climática num feliz matrimônio estilístico e autoral com o diretor,levando adiante o poder psicológico/temático que Herrman e Morricone impuseram ao cinema com frases tensas de piano,coros infernais,sopros exultantes(nos créditos a trilha anuncia o início de uma nova abordagem) e acelerações rítmicas(principalmente nos momentos mais violentos).

Apesar de ter feito grandes trabalhos autorais e honestamente artísticos,Fulci morreu pobre,doente e renegado à "midnights sessions".A hipócrita crítica de cinema do pós-guerra capitalista simplesmente nega os lados mais obscuros da mente humana,nega Freud,nega os grandes movimentos artisticos do seculo XX para defender uma suposta esperança hipócrita.Dizer que tal esperança deve estar sempre presente na arte é por fim negar o próprio ser-humano,visto que desde a Idade das Pedras as manifestações artísticas são retrato das emoções humanas,sem se preocupar com pré-conceitos ou em esconder o horror da fragilidade material da carne humana em prol de uma utópica sociedade.É essa negação e falta de visão abrangente que faz com que gente coxinha como Roger Ebert faça questão de ir em programas televisivos para condenar o niilismo e a violência no cinema,como se isso fosse feito por seres anormais perversos ou adolescente punheteiros."Além das Trevas" não é sangue e carne dilacerada jogada de forma aleatória por pleno sadismo de distúrbios psicossexuais,é um artefato fílmico com um objetivo eficiente para aqueles que conseguem enxergar a arte acima do pré-conceito.Então muito cuidado quando forem falar mal de algo que não seja favorável ao mundinho pequeno ao qual estão enclausurados,porque pessoas informadas podem simplesmente te desarmar.Não trate o horror como uma coisa passageira,como um orgasmo fugaz.O horror é a faceta mais antiga do homem desde que Odisseu massacrou os pretendentes de Penélope no épico de Homero ou quando Jesus e Fausto sofreram intervenções de Satã.O horror está no subconsciente de cada um de nós,e cabe a nós deixar esse sentimento ser explorado por artesões psicanalistas competentes...e Lucio Fulci mostrou com "Terror nas Trevas",ter sido um dos grandes.

"Brother"(2000) - Takeshi Kitano





Em "Brother" Takeshi  é Aniki,um funcionário da Yakuza que se envolve em uma briga de famílias e vê a morte de seu chefe seguida da submissão covarde de seu irmão que corta o próprio dedo para demonstrar fidelidade ao inimigo.Nessa perda de lealdade fraternal e de honra mafiosa na Yakuza,Aniki desce em Los Angeles para encontrar seu outro irmão,o mais novo e que deveria estar longe do crime,enrolado com uma gang de bandidinhos que vendem drogas na esquina  e que não possuem atitude para comandar no crime.Assumindo as rédeas,Aniki não enxerga freios,e na tentativa de montar uma outra associação fraterna dessa vez bem sucedida ele vai eliminado os rivais facilmente até ter que se defrontar com os italianos.Montando sarcasticamente uma hierarquia criminosa,Kitano põe a Yakuza como uma decadente rixa de amostras de honras superficiais,os negros americanos como irresponsáveis,os hispanos como irrelevantes e demonstra uma certa reverência para a secular Mafia italiana.Com o sentido de família mais uma vez destroçado por mais um irmão covarde em frente ao destino,o verdadeiro "brother" acaba sendo o cupincha Denny(Omar Epps),negro desbocado que sofreu uma garrafada no olho de Kitano logo de chegada.


"Brother" não conseguiu me extasiar como "Hana-Bi",mas é Kitano violentamente  melancólico e irônico.Kitano não surgiu  como um cineasta antropofágico típico do início dos anos 90,ele foi matéria-prima original assimilado pela antropofagia.Aliás...Kitano nem surgiu como cineasta,surgiu como comediante stand-up,polêmico por gozar da sociedade e dos "marginais" sem perdoar idade,crença,beleza,status.Foi proibido de entrar em emissoras de tv.Teve um programa de tv.Escreveu romances ,poesias e livros sobre cinema.Pintou aquarelas..."Hana-Bi" por favor.Mais uma coisa...Takeshi Kitano na verdade é Beat Takeshi e vice-versa.No cinema Kitano brinca com a Yakuza e com a morte que convive ao seu lado,niilista com sorrisos de sarcasmo.Mas também pode ser suave e família ou se auto-ironizar.


 Com tudo isso,Kitano É a cultura japonesa...se bobear Kitano É o Japão moderno.Duvida?Então ponha "Glória ao Cineasta"(2007) para rodar.Kitano não surgiu com o cinema,o cinema como a arte completa engloba todas as suas facetas.Assumindo total controle da obra,Kitano dirige,atua,edita.Na verdade ele faz mais que atuar...ele cria uma persona,um Eastwood Yakuza,um Yoshimbo de terno e óculos escuros.Um dos maiores autores a surgir no cenário japonês pós-moderno junto com Juzo Itami.
Em "Brother" Kitano joga com honra,fidelidade,valores e família.Mostra que é tão duro Caim matar Abel quanto deixar Abel às traças.Nessa desilusão a América se mostra como o palco do mergulho de Aniki na violência,com a passividade de sua personalidade profetizando o teste mortal de honra.Denny e a perda da família entra em sintonia com a alma de Aniki,o que causa o ato de gratidão final e a atitude de entrega da vida ao inimigo,até porque a vida é carne e vazio sem o laço familiar.Através da aridez poética da narrativa,de montagem com sinapses violentas e longos planos estáticos de vida corrente e real de convívio, Kitano monta esteticamente o desespero moderno mostrando a vida como uma comédia perversa...e prova ser um cara que conhece as ruas e seu desesperançoso ecossistema,independente da nacionalidade dessa rua.


segunda-feira, 17 de setembro de 2012

"O Intendente Sansho"(1954) - Kenji Mizoguchi




"O Intendente Sansho" abre uma gama de discussões em muitos âmbitos.Filosófico,espiritual,antropológico,o filme de Mizoguchi é como o resto de sua filmografia,te conduz numa teia de visões em busca de uma redenção.Uma mágica obtida pelo enlevo diante de um realismo fantástico,palco de medos e anseios de personagens identificáveis.
O filme abre com a mulher Tamaki,seu casal de filhos e uma criada,em uma jornada para encontrar o ex-governador pai das crianças,após 6 anos deste ser exilado por contrariar os desmandos dos tiranos.Flashbacks  fluidos trazem à tona as lembranças de Tamaki e dos ensinamentos do marido para seu filho mais velho Zushio: "Sem piedade o homem é uma besta.Mesmo se você for severo consigo mesmo,seja piedoso com os outros." No entanto em meio ao trajeto eles são enganados por uma falsa sacerdotisa,as crianças são raptadas e vendidas como escravas para o cruel Intendente Sansho,e sua mãe é vendida para um bordel enquanto a criada é morta afogada.Anos se passam e enquanto Zushio perde toda sua alma se tornando o braço direito do Intendente nos castigos infligidos aos que corajosamente tentam fugir,sua irmã Anju ainda tem a esperança de encontrar a mãe.

Assim como em "Contos da Lua Vaga",Mizoguchi abraça o tom de fábula do conto do popular(no Japão) escritor Mori Ogai mesmo sem bruxarias e espíritos.A verdade que se consegue extrair do filme no entanto é muito mais real e atual.Bebendo em fontes americanas como John Ford,a busca pela vingança e redenção contra a tentação e o domínio do mal casam com a paisagem,ressaltando a natureza e tornando táctil as brilhantes águas dos lagos e a poeira da aldeia de Sansho.Não à toa o diretor de fotografia é Kazuo Miyagawa de "Rashmon",uma prévia da paisagem de Apichatpong.A violência é seca,quando as crianças são separadas da mãe,por exemplo,o trabalho de câmera magistral  passa um pânico cortante ao som de flauta  da hipnótica trilha sonora.
Mizoguchi dizia que só a partir de seus 40 anos é que ele começou a se preocupar com os verdadeiros valores humanos em seus filmes,principalmente com "Crisântemos Tardios"(1939)."O Intendente Sansho" é seu ápice nesse sentido.O personagem Sansho por si só representa toda a corrupção de alguém que seria responsável pela justiça,mas que só busca proveito próprio na arrecadação de impostos e na escravidão.Quantos Sanshos não existem no Brasil por exemplo?A reviravolta absolutamente dilacerante que o filme dá no final mostra o quanto é válido seguir certos mandamentos virtuosos,e é praticamente impossível não se entregar ao choro.

Trailer:


segunda-feira, 10 de setembro de 2012

"Interlúdio"(1946) - Alfred Hitchcock




"Interlúdio" é passado no Brasil,é o maior romance de Hitchcock,a maior trama de espionagem,e um de seus filmes mais completos.
Livre do produtor David O. Selznick,que vendeu o filme para a RKO,o gordinho se juntou ao roteirista Ben Hecht e juntos desenvolveram a história da mulher que se apaixona por um agente que praticamente a joga  na cama de outro,por motivos políticos de dever.A história de dois homens em lados opostos se apaixonando pela mesma mulher.Um romance de confiança e um suspense de espionagem,que usava o urânio como macguffin 1 ano depois da bomba de Hiroshima.
Ben Hecht era um dos roteiristas mais prolíficos e versáteis de Hollywood,foi o homem que botou vários personagens numa diligência em "No Tempo das Diligências"(1939) de John Ford e criou a verborragia alucinada de "Jejum de Amor"(1941) de Hawks.Numa demonstração de respeito pelo diretor,as opiniões de Hitchcock eram amplamente aceitas resultando numa história que exploraria o melhor do diretor.
Como disse Truffaut :
 "Tirando o  máximo de efeito dos mínimos detalhes,o resultado foi tão perfeito quanto um desenho animado."

Sim,o máximo do mínimo é o que se percebe desde a primeira cena no tribunal quando o pai alemão da americana Alicia(Ingrid Bergman em uma de suas melhores atuações) é condenado por espionagem nazista.Sabidamente contrária aos ideais paternos,ela é contactada pelo agente Devlin(Cary Grant)para ir ao Rio de Janeiro num trabalho de cooperação,onde acabam se apaixonando.Isso até Devlin descobrir que tem que persuadir Alicia a seduzir Alex Sebastian(Claude Rains),ex-amigo de seu pai e que é lider de um grupo de cientistas-nazi que operam escondido no Brasil.Assumindo o poder do dever acima do amor,Devlin assume uma posição fria enquanto Alicia se vê obrigada à casar com Alex e a arriscar a sua integridade física num triângulo amoroso observado pela suspeita opressora da maquiavélica mãe de seu novo marido.

Poucos cineastas da época se dedicavam tanto para extrair o máximo de cada cena,de construir um todo autoral que correspondesse com sua visão do que Hitchcock..."Interlúdio" é um exemplo disso.Estudando de forma perfeccionista cada pormenor do filme na pré-produção em  storyboards,o filme se esbalda de subterfúgios visuais: o ponto de vista bêbado de Alicia virando Cary Grant de ponta-cabeça,o reflexo do espelho retrovisor do carro,o lento envenenamento de Alicia com a xícara mostrada em primeiro plano,a presença dominadora da mãe de Alex surgindo lentamente de encontro à câmera quando desce a escada,etc...
O elemento-chave mais conhecido do filme é,sem trocadilhos,uma chave.A chave da adega que contém provas de urânio escondidas em garrafas de vinho e que Alicia tem que passar paras as mãos de um Devlin disfarçado durante uma festa na mansão de Alex,para que esse possa entrar,vasculhar e sair,antes que falte bebida e que o vilão tenha que descer para suprir o estoque.Numa famosa cena a câmera se aproxima lentamente de cima e vai descendo até a mão nervosa de Alicia  segurando a chave.

O brilhantismo da atuação de Rains está no carisma que ele passa mesmo sendo um nazista.O seu amor é verdadeiro,a sua decepção é verdadeira,as suas nuances são variadas,e o seu medo é exasperador na cena final.A mãe dominadora,um dos aspectos freudianos mais recorrentes em Hitchcock,tem a sua primeira grande presença nesse filme abrindo mais uma etapa do psicossexual em filmes.
O que mais me impressionou portanto foi o modo erótico que Hitchcock retrata a paixão de Devlin e Alicia com o uso constante de closes e jogos de luz e sombra em meio a beijos e amassos.O Codigo Hayes permitia só 3 segundos de beijo num filme,Hitchcock filma 2 minutos e meio de beijo,usando 3 segundos de beijo intercalados por narigadas e assim vai....O fato da confiança quebrada,da resignação face ao inevitável em meio ao tumulto do ciúme,torna essa produção um filme quente,com o tão conhecido clima  brasileiro servindo de afrodisíaco para um triângulo de díspares paixões.



"Crisântemos Tardios"(1939) - Kenji Mizoguchi




Arrisco dizer que junto com filmes de 1939 como "Stagecoach" e "A Regra do Jogo" ou que ainda seriam lançados nos próximos dois anos como "Rebecca" e "Cidadão Kane","Crisântemos Tardios" é um dos filmes mais influentes do cinema moderno e um dos grandes pioneiros a surgirem nessa virada de década.O ruim é que o cinema oriental ainda tinha pouca visibilidade no Ocidente até "Rashomon" de Kurosawa abrir as portas,e Mizoguchi ser redescoberto por Jacques Rivette na Cahiers du Cinemá.Mesmo que à frente do seu tempo,os trabalhos mais reconhecidos do diretor viriam com "Contos da Lua Vaga"(1953) e "O Intendente Sansho"(1954).Um artista quase que completo,o diretor era perito em teatro Kabuki e Noh e "Crisântemos Tardios" é um dos melhores filmes sobre o teatro.

No século XIX,o jovem ator Kikonosuke se recente de não ter o mesmo talento que seu glorioso pai adotivo.Bajulado  pela fama que tem devido o parentesco,pelas costas ele é ridicularizado pelos amigos e é tido como sem-futuro aos olhos de seu pai.É quando se apaixona pela criada Otoku - franca como ninguêm e disposta a ajudá-lo em seu treinamento.Como sua família se opõe ao namoro,Otoku é demitida e some enquanto Kikonosuke foge de casa em busca de uma reviravolta.É quando ele reencontra Otoku,e juntos partem para uma vida de casado numa trajetória por trupes e hospedarias que dura anos de dificuldades,desavenças e tragédias,com a mulher se mostrando a base estrutural para o sucesso do marido,nunca deixando que o desânimo o abrace na busca pelo aperfeiçoamento de sua arte.

Um conto romântico e sensível,Mizoguchi dá uma liberdade às personagens femininas pouco vista na época,principalmente no Japão.Longe de ser apenas feminista contemporâneo,o fato de a sociedade retratada ser de 1885 mostra que a intenção de Mizoguchi é só situar a mulher no lugar em que ela sempre teve.Tomando as dores femininas para si,o diretor exorcisa fantasmas de sua mente,da época em que quando criança seu pai batia na sua mãe e sua irmã foi vendida para um bordel.Essa defesa do papel feminino exaltado em todas as eras é uma recorrente de sua filmografia e um dos motivos temáticos principais de sua influencia.

Tecnicamente  é que Mizoguchi se mostra um puta contador de histórias.De forma visionária ele usa ostensivamente de long-shots que,longe de serem exclusivamente estáticos ou contemplativos,usam e abusam de movimentos de câmera e tracking-shots onde os personagens coreograficamente percorrem os cenários e interagem numa construção de mise-en-scéne absolutamente emocional e realista.Planos abertos ressaltam uma fotografia sterbergiana com lâmpadas cuidadosamente distribuídas iluminando expressivamente o cenário.O modo como Mizoguchi filma as cenas do teatro são de uma reverência que ultrapassa o ego do diretor chegando até nós.É essa mise-en-scène que tridimensionaliza os personagens,superlativizando o tocante final que alegoriza com a flor do crisântemo que  morre no final do outono com o triunfo da primavera.
Um filme pra quem subestima a máxima de que por trás de todo o grande homem existe uma mulher.Um filme para quem ama ou já amou,e acredita na dedicação e no triunfo através desta.Talvez o maior dos filmes de amor.Talvez um poema.

Tracking-shot de Mizoguchi mostrando o primeiro encontro do casal protagonista:



"As Três Noites de Eva"(1941) - Preston Sturges




Preston Sturges começou na Broadway e virou roteirista em Hollywood,muito bem pago por sinal.Mas apesar do alto salário,como todo grande artista verdadeiro,o modo como seus escritos eram dirigidos não lhe satisfaziam,tomando logo as rédeas da direção.Seu terceiro filme nessa posição de auteur foi "As Três Noites de Eva"" que estava três passos à frente da conservadora América do início dos anos 40,não só em seu diálogo abertamente sexy,como no modo rebelde em que ele se utiliza da narrativa cinematográfica.Diferenciado de seus colegas ilustres de screwball comedy(comédia pastelão) como Hawks e McCarey,que colocavam sua versatilidade a favor dos gêneros,Sturges baixava a cabeça na escrivaninha e criava algo que conseguia não contrabalancear,mas misturar surrealmente o escracho com a paródia,a sátira humana com a ironia cômica.O seu modo de usar as ferramentas do cinema em harmonia com o ritmo do timing da comédia seria o início de estilos que muitos seguiriam ainda no cinema,como Woody Allen (principalmente até "Annie Hall").Um dos filmes mais inspirados pelo estilo é "Arizona Nunca Mais".Assim como no filme dos Coen, a intenção é ser ininterrupto em deboche usando da edição para ressaltar o hilário dos personagens.Esse clima lúdico para adultos se fortalece nos truques visuais(como quando Jean Harrington observa pelo reflexo do espelho a reação de Charles Pike com as mulheres à sua volta),lembrando que o clima de cartoon tem que se manter como condutor da mensagem.

Jean Harrington(Barbara Stanwick,mais tesuda que em "Pacto de Sangue") é uma vigarista que junto com seu pai e um amigo,encontra o herdeiro Pike(Henry Fonda provando uma versatilidade imensa)num navio e o escolhe como a próxima vítima.Acontece que ela se apaixona...ele descobre o plano,a rejeita...e ela volta para se vingar de um jeito inacreditável.
O mais sensacional é a libido que carrega o filme, Sturges coloca a mulher como a dominadora que corrompe e instiga o homem a tomar a atitude através do jogo sexual.O personagem de Fonda é um mané,um playboy nerd obcecado por cobras(!!!???),que recusa todos os avanços das garotas que constantemente o seduzem pelo seu dinheiro e vive num aspecto tenso/atrapalhado angustiante.Quando Jean entra na vida dele,a coisa toma outro sentido com o suor escorrendo de sua testa subjugado por uma sensualidade erótica imensa.Stanwick era a mulher das mulheres e o seu brilhantismo é imenso em "As Três Noites de Eva",chegando a ganhar sotaque inglês numa reviravolta que sua personagem toma no desenrolar dos fatos.
Henry Fonda já tinha sido Lincoln e cowboy fordiano,mas mesmo assim convence como o pateta da "barraca armada".

Sturges era fodão,o set de filmagem era um carnaval,uma família num convivío intenso com seus atores que refletem bem a leveza e liberdade do filme.Casado quatro vezes,o auteur não tinha papas na caneta nem na câmera para lançar em frases e gags a sua ironia social.Escreveu esse roteiro lascivo e apaixonadamente feminista(tirando como base um livrinho de 20 páginas do dramaturgo inglês Mockton Hoffe) no divórcio de seu terceiro casamento,não poupando alfinetadas para o sexo oposto ao mesmo tempo que coloca a mulher como a origem do homem em todos os sentido.Com ele não tinha família,igreja e  nem american way of life,era o homem/mulher/sexo,o namoro e o amor livre.E isso que o roteiro teve que ser revisado para ser aprovado pelo Código Hayes,que se incomodou justamente pelo gosto por cobras do protagonista e pela "gratuita" referência ao ato sexual sem valores morais intrínsecos.
"As Três Noites de Eva" era a liberdade sexual em 1941...vejam bem...em 1941,duas décadas antes do início dos libertadores anos 60,quando a Segunda Guerra estava apenas começando.É a malícia inteligente dos créditos iniciais até o momento em que,numa cena absolutamente ousada para a época,Pike arrasta desesperadamente Jean para o quarto do navio,não se importando com ninguém em volta,mostrando para ela o que já deveria ter mostrado à tempos.Adoro tapas na cara da hipocrisia e "As Três Noites de Eva" foi um dos mais importantes do cinema.

domingo, 9 de setembro de 2012

"Rebecca"(1940) - Alfred Hitchcock



Quando desembarcou nos EUA,Hitchcock já iniciou com dois filmes no mesmo ano: "Correspondente Estrangeiro" e "Rebecca".
Enquanto o primeiro foi o thriller inglês elevado ao status de super-produção e tinha mais a cara do diretor,o segundo foi o carro-chefe de David O. Selznick para ganhar o Oscar usando do talento alheio.Dinheiro não faltou na produção,o que claramente é mostrado na gótica introdução apresentando uma das maiores mansões cenográficas do cinema,e Hitchcock gostava de Daphne du Maurier,já tendo inclusive filmado a adaptação "Jamaica Inn" na Inglaterra um ano antes.
Independente de ter sido oportunista ou não,o filme abriu as portas para novas possibilidades no cinema de  Hitchcock,sendo o primeiro  a tomar um rumo psicologicamente intenso,se tornando a gênese da análise mental de "A Sombra de uma Dúvida"(1943),"Spellbound"(1945),e do ápice de "Um Corpo Que Cai"(1958),"Psicose"(1960) e Marnie(1964).
"Rebecca" é um dos filmes mais opressores,mais claustrofóbicos de Hitchcock,onde o pânico do deslocamento se reflete de forma angustiante na personagem de Joan Fontaine.

Fontaine é uma jovem órfã tímida e desajeitada que trabalha como acompanhante de uma falastrona ricaça em Monte Carlo quando conhece o viúvo Maxim de Winter(Laurence Olivier),proprietário da mansão de Manderlay,no que parece uma tentativa de suicídio deste.
Meio que seduzido pela forma desajeitada e infantil da jovem,Maxim decide se casar com ela.O problema é que uma nerd ,acostumada sempre a servir os mandos mais reles como acompanhante,está longe de ser a administradora aristocrática de uma mansão.Ao chegar em Manderley ela se depara com a presença opressora da casa,do fantasma presente de Rebecca(a falecida e popular ex-esposa  de Maxim),e da tortura psicológica da Governanta Denvers que ainda guarda uma adoração fantasmagoricamente lésbica com Rebecca e faz de tudo para transformar num inferno a vida da nova Mrs.deWinter.

Num dos primeiros exercícios de manipulação psicológica do cinema,Hitchcock mistura elementos góticos e expressionistas para transformar apenas um nome num protagonista onipresente e que influencia os personagens  em cada uma de suas reações,nem que seja na forma de um R bordado.
O personagem de Fontaine por exemplo,é anônimo,só sendo reconhecida como Mrs. deWinter após se casar,o que aumenta ainda mais o poder do nome Rebecca.
Eu só destaco atuações em filme quando sei que ajuda realmente uma porcentagem do desenvolvimento do filme.E o que Joan Fontaine faz aqui é inacreditável.Vivendo em constante ansiedade e amando um homem que vive num ambiente turbulento e neurastênico de recordações,sua personagem não consegue manter a cabeça ereta em frente aos empregados e é massacrada pelas altas paredes da mansão.
Fontaine era tratada de forma indescritivelmente cruel por Laurence Olivier nos sets,que queria sua mulher Vivien Leigh no filme.Hitchcock sabendo disso mentiu que não só Olivier como toda a produção a odiava,aumentando a autenticidade da incomunicabilidade da personagem e ao mesmo tempo se colocando como um dos diretores mais cruéis da história.
Judith Anderson por sua vez adquire o caráter mais expressionista do filme quando entra em  interação com o cenário da mansão para manipular a mente de Mrs. Denver ou induzi-la ao suicidio,enquanto invoca o fantasma de Rebecca  e se arrasta nosferaticamente como uma necrófila de saia.

"Rebecca" usaria de forma muito mais ampla que em seus filmes anteriores técnicas visuais que influenciariam cineastas posteriores(pleonasmo dizer isso),principalmente aquelas mais assimiladas pelos americanos,como zoom-in dramático,pioneiro uso de deep focus,tensão obtida pela montagem e alternância de closes,movimentos de câmera auto-explicativos(como quando a câmera vai relatando visualmente a confissão de Maxim sobre a morte de Rebecca na cabana),e a trilha sonora climática de Franz Waxman(antes de Bernard Herrman em "Cidadão Kane"),além claro do terror psicológico e da reviravolta que desestrutura a trama.
Os minutos finais continuam sublimes acima de tudo,com a camera invadindo a mansão que se incendeia presenciando o destino trágico da governanta que não se entregou e preferiu a morte,assim como a morte de Rebecca,simbolizada por um traveling em direção à um R bordado num travesseiro em chamas.Orson welles claramente chapou o coco com esse final.


"Alien 3"(1992) - David Fincher



O debut de David Fincher consegue mostrar muito mais das características soturnas e opressoras de seus melhores filmes do que "O Curioso caso de Benjamin Button"(2008) ou "A Rede Social"(2010).Aquela estética do desagradável fria que estaria muito mais elaboradamente expressa posteriormente em filmes em que ele  teria um controle autoral maior como "Seven"(1995) ou "Clube da Luta"(1999),acaba se tornando  superior à intervenções agonizantes que ele sofria do estúdio,fazendo com que o rascunho do estilo de Fincher acabe criando um clima sufocante condizente com a visão de mundo fria dos anos 90.
Conseguindo colocar suas idéias no roteiro,Fincher põe para escanteio qualquer possibilidade de respeito à mitologia dos filmes anteriores.E ele estava certo.O monopólio dos personagens não pertencia à Ridley Scott ou James Cameron.Enquanto o primeiro se mostrou habilidoso no suspense de ficcção científica em 1979,Cameron construiu uma  militarizada carnificina testosterônica americana no espaço.A saga estava ali para que cada autor colocasse a sua visão.Fincher queria extrair o horror autêntico,e se tem um filme da série que mais chegue perto do puro gênero do horror,é "Alien 3".Principalmente do horror vigente na época,com gore realista e câmera subjetiva em corredores.

Em "Aliens - O Resgate"(1986) de Cameron,Ripley tem que defender à duras penas uma criança órfã enquanto se envolve amorosamente com Hicks(Michael Biehn) e adquire confiança no salvador andróide Bishop.Num final feliz e aliviador,os 4 personagens se salvam,quase que numa exaltação alegórica à família,hibernando todos juntos num módulo espacial.
Nos créditos iniciais de "Alien 3" Fincher mata todos esses personagens,deixando apenas Ripley como sobrevivente,quando o módulo é mais uma vez invadido pelo alienígena.Numa negação quase absoluta de bem,o módulo cai numa prisão-refinaria espacial habitada por condenados estrupadores,assassinos e afins, que resguardam a ordem e o respeito por uma fanática religião enquanto convivem numa atmosfera claustrofóbica de ar amarelado,cheiro de podridão,canos que servem de ninhos para vermes,barulho de portas de aço se fechando constantemente e eterna desconfiança.Ripley é afundada num universo de niilismo angustiante.Não só descobre que sua "filha" está morta como,na inevitabilidade de ter que descobrir como a criança morreu,ela tem que presenciar o médico da prisão Dr. Clemens(Charles Dance) abrir seu tórax com a edição de som cuidando dos ruídos mais desconfortáveis.Para concluir com o pessimismo,Ripley descobre não haver armas de fogo no local e estar grávida do alienígena partindo para uma corrida suicida quando qualquer chance de salvamento é implodida.

O niilismo é o que importa em "Alien 3",o niilismo acima de qualquer desenvolvimento psicológico.Se Ripley se encontra constantemente vitima de seu nemesis,aqui ela se encontra vítima do negativismo de Fincher.Dr. Clemens,que satisfaz a seca sexual da tenente,é abruptamente eliminado quando justamente parece ser ele o facho de luz,evitando espertamente a inutilidade romântica do conceito de horror que o diretor resguarda.Sigourney Weaver com sua cabeça raspada  e com sua interação natural e até superiormente masculina diante dos presidiários,entrega sua Ripley mais resignadamente dura,destruida,experiente e devastada.A música do excelente compositor Elliot Goldenthal é igualmente eficiente na simbiose climática que adquire com o filme e que demorou um ano para ser desenvolvida com a colaboração do diretor.
"Aliens 3",se revisto, acaba sendo um dos horrores mais eficientes da década de 90 mesmo em sua incompletude,como o fraco uso do CGI ,inferior ao trabalho de Stan Winston(mas mesmo assim indicado ao Oscar,afinal é 1992),e o final do parto-suicida,por demais exagerado.

sábado, 8 de setembro de 2012

"Depois do Vendaval"(1952) - John Ford




"Depois do Vendaval" é o mais próximo que o cinema chegou da pintura.Uma das mais belas fotografias do cinema que não beiram a pretensão,muito pelo contrário,espelham a alma de um diretor.É o filme de Ford que mais vontade dá de ver e rever.É um sonho realizado,um universo retratado.Cada fotograma envolvendo a paisagem é uma obra-de-arte particular,cada interação entre os personagens um remédio para a alma.Tendo que filmar o western "Rio Grande" para que financiassem  "Depois do Vendaval",Ford surpreendeu fazendo do filme seu maior sucesso até então,e um dos maiores expoentes de sua arte.

A Innesfree(Irlanda) é o Rosebud de John Ford,a infância perdida que ele sempre tentou buscar em filmes como "Como Era Verde o Meu Vale"(1941),mas que atinge a plena realização psicoanalítica com "Depois do Vendaval" não  só devido à cor,mas pelo claro posicionamento de um alter-ego.Muitos que não conhecem o estilo autoral de Ford se julgam erroneamente no direito de julgar o suposto conservadorismo e sentimentalismo que o filme encerra,o que passa longe de ser uma verdade."Depois do Vendaval" é o subconsciente de Ford sendo espremido como um limão,resultando em todos os seus arquétipos junguianos convivendo numa utópica e idealizada sociedade onde Sean Thorton(John Wayne) desembarca vindo dos EUA para achar refúgio espiritual,perturbado por ter matado acidentalmente um adversário seu numa luta.Chegando no vilarejo de Innisfree ele já consegue inimizade com Will Danaher(Victor MacLaglen,grande e engraçado)pela compra da propriedade em que nasceu,ao mesmo tempo que se apaixona por Mary Kate(Maureen O'Hara)...irmã de Will.
Conseguindo se casar com a ajuda dos outros habitantes,Will não entrega o dote de Mary,sendo que para isso Sean teria que encarar Will no soco,o que ele não faz devido ao trauma do boxe,lhe dando uma fama de homem quieto enquanto sua recém-mulher o despreza acusando-o de falta de masculinidade.

Numa Irlanda onde católicos e protestantes se apoiam mutualmente,e onde pescar,plantar e beber regem a rotina diária,Ford coloca o sexo como o motor de toda trama e acaba subvertendo os valores conservadores na figura do americano Sean,que foge com Mary de bicicleta;a beija sem  pedir,sozinho numa cabana; e não aceita aquilo que o clássico alcoolizado fordiano interpretado por Barry Fitzgerald lhe avisa:
" -Aqui não é a America,é a Irlanda!"
lembrando o quanto era importante a tradição para aquela comunidade viver como vivia,alienada em cantorias etílicas e eventos anuais.Os cabelos ruivos de Maureen juntamente com seus movimentos e olhares maliciosos ressaltam o fogo sexual que impera em seu corpo de virgem.A simbiose natural de Ford da paisagem com o homem alcança a hipérbole nesse filme,se mostrando como o Paraíso celeste desejado pelo diretor em seu pós-mortem,numa das raras visualizações em cinema de um mundo perfeito num sonho absolutamente realizado em meio a ventos,gramados,lagos,pontes e amizades.

"Trono Manchado de Sangue"(1957) - Akira Kurosawa




Kurosawa foi um dos grandes retratistas dos sentimentos humanos conseguindo pincelar com uma visão cinematográfica abrangente e a frente do seu tempo,as diferentes reações do homem diante do destino.Da mesma forma como Orson Welles,e tão influente quanto este,as peças de Shakespeare cabiam como uma luva para  a facilidade com que ambos tinham de mergulhar na alma humana e mergulhar no redemoinho da soberba,da ambição,da tolice e da intolerância do homo sapiens.Em 1948 Welles filmou "Macbeth",um filme barato mas rico de arte expressionista cinematográfica,que junto com a fidelidade do texto original se coloca como a maior adaptação da obra no cinema e um dos filmes mais dilacerantes do mestre;9 anos depois Kurosawa iria transpor a peça para o seu tão explorado japão feudal da Era-Sengoku,com "Trono de Sangue".

Se servindo da trama sobre maldição e ambição do bardo inglês,Kurosawa coloca sua visão lírica-aventuresca à favor de uma edição multi-angular fazendo com que o filme se insira àqueles que,como "Rashomon"(1950) ou  "Os Sete Samurais"(1954),inspiraram gente como Sergio Leone,Scorsese,John Millius,Spielberg,Yimou e até o próprio Welles em "Falstaff".Fica claro por exemplo da onde Leone tirou tanta chapação para "A Trilogia dos Dólares",com o modo pioneiro com que o japonês casa a construção das cenas colocando varias câmeras em diferentes ângulos casando a mise-en-scene dos atores com uma manada de cavalos e bandeirolas sujas de lama embalados pela música de Masaru Sato,que vamos e convenhamos,lembra em muitos aspectos a climatização de Morricone nos spaghetti.A marca mais registrada é interação homem/natureza chupada de Ford,que como comum nos filmes de Akira,atingem o máximo da sensibilidade oriental,com todo o caos humano convivendo com as florestas e suas arvores mantenedoras de segredos seculares,a densa neblina dissipada como uma cortina,a chuva que corta a alma e o sol que espreita por entre os galhos e entra nos aposentos à dentro.Uma ambientação tão viva visualmente que acentua o alcance realista que o perfeccionismo do diretor exige da tragédia humana,com aspectos dramáticos que seriam mais aprimorados em 1985 com "Ran",baseado em Rei Lear,outra peça de Shakespeare.

Assim como em "Ran",Kurosawa decide retirar qualquer caráter europeu da narrativa,induzindo seus atores à interpretações típicas do estilo do teatro Noh o que confere uma excelente atuação de Toshiro Mifune e Isuzu Yamada.Mifune visceral como sempre e desesperadamente afundado na paranóia,e Yamada construindo uma Lady Macbeth quase fantasmagórica em sua impassividade e submissão,máscaras da persuasão maliciosa.
O modo como o diretor foi pioneiro no horror e na violência estilizada estão tanto nos corpos de samurais esfaqueados tremendo na agonia da dor da morte lenta,quanto na incrível cena final.Um exemplo de perfeccionismo doentio,a cena que mostra o protagonista sendo linchado à flechadas é uma das mortes mais bem dirigidas do cinema,com flechas de verdade sendo disparadas contra Mifune para tornar o seu medo autêntico,à medida que a edição e a sobreposição vão transformando seu corpo em um alvo vivo.

"Coronel Blimp - Vida e Morte"(1943) - Michael Powell e Emeric Pressburger




A dupla Michael Powell e Emeric Stressburger formaram sob o nome de The Archers a maior associação autoral do cinema.Tomando para si mesmos os roteiros,a direção e a produção,a dupla viria a influenciar e muito Spielbergs,Copolla e outros da New Hollywood.Um dos seus primeiros sucessos artísticos é a  epopeia romântica de Coronel Blimp.Filmado no auge da Segunda-Guerra,contou com sérias ameaças de banimento por Winston Churchill,e muitas caras foram viradas devido ao simpático personagem alemão Theo(Anton Walbrook).
Dois anos após  o surgimento de "Cidadão Kane",Coronel Blimp mostra ser a contribuição inglêsa mais influente para o cinema moderno,guardando similaridades com o filme de Welles em muitos aspectos,tanto no modo como repentinamente desconstrói a narrativa,como no envelhecimento físico do protagonista em uma brilhante  e inovadora maquiagem.Acima de qualquer aspecto visual,como o estonteante uso da cor,é na temática e na personalidade que o filme guarda brilhantismo.

Construido como uma comédia típica do sarcasmo britânico, na mesma linha das produções da Eagle por exemplo,Coronel Blimp é um filme que acaba enveredando por questões mais profundas,se mostrando um sincero estudo de personagem.Com um timing impressionante e câmeras em motocicletas,o filme começa no meio da Segunda Guerra Mundial,onde um  pelotão liderado pelo Tenente Spud displicentemente antecipa a realização de uma "guerra simulada",abordando os generais em um banho turco.No confronto com o velho Major Clive Candy,que não aceita a desculpa da antecipação da simulação para uma aproximação maior com a realidade e pela falta de organização e modos que isso proporcionou,Spud solta um grupo de insolências e insulta o bigode de Candy,resultando numa briga de socos na piscina do clube com o velho Major disparando frases como "Você fala do meu bigode,mas não sabe como eu consegui!Você fala da minha barriga mas não tem idéia de como ela foi aparecendo!".Num pulo temporal impressionante,emerge da piscina o jovem Tenente Candy,em 1902, com o filme tomando a idéia de envelhecimento e aprendizado para tornar aquele típico general  velho e gordo inglês -Coronel Blimp  foi inspirado numa caricatura popular na Inglaterra -no protagonista da odisséia de paixões de alguém que não consegue manter seus valores de honra e dignidade através dos tempos,numa óbvia mensagem de que toda a retrógada diplomacia fleumática britânica deveria ser posta de lado diante do Nazismo.

Toda essa comédia corajosa,uma crítica aos valores ancestrais ingleses,faz com que o estereótipo que o filme faz do alemão,rindo não só da impostação e da linguagem alemã como até mesmo da farofagem da música clássica romântica,fique apenas como mais uma piada dentro do circo das rivalidades militares,se afastando de qualquer atitude xenofóbica.É preciso entender que a Alemanha foi inimiga do Reino Unido nas três guerras pela qual o personagem passa,sendo sempre o lado negro da lua.
Na Guerra dos Boers,na Primeira Guerra e mais obviamente no nazismo da contemporânea Segunda Guerra,o deboche contra o constante inimigo seria inevitável por parte do filme.Quando surge a professora de inglês Edith Hunter,o primeiro  personagem de Debohra Kerr(que faria três no filme),começa  o enveredamento do que há de mais humano na figura ágil e militar de Candy,fazendo com que o surgimento de Theo,um alemão,prove o quanto,apesar das guerras, a humanidade é ligada pelo mesmo fio que tece o amor e a amizade.

Isso acontece quando Clive decide ir de forma indisciplinada para Berlim  para fazer algo relacionado à  Kaunitz,um alemão que estaria espalhando propaganda contra a Inglaterra e coincidentemente tinha sido prisioneiro junto com ele recentemente na Guerra dos Boers.Com a ajuda de Edith,ele localiza Kaunitz e numa série de provocações hilárias num restaurante,ele ofende todo o alto escalão militar alemão,terminando tendo que se enfrentar em um duelo de esgrima com o desconhecido Theo.Com o enfrentamento resultando em uma cicatriz para cada um,Theo e Clive acabam iniciando uma grande amizade no hospital, juntamente com Edith,que  termina se apaixonando por Theo.Com um belíssimo senso de compreensão,Clive aceita de bom grado o casamento de seus amigos,mesmo apaixonado loucamente por Edith.Com o nazismo no auge,o público britânico não aceitou bem o amigo alemão que rouba a mulher do inglês,numa massificada atitude rasa e quase desumana de se ver o mundo,que propositalmente o filme queria despertar.

Separado de seus amigos  e já com o bigode crescido para esconder a cicatriz,o filme pula mais uma vez no tempo para a Primeira Guerra,onde os valores do agora Brigadeiro Clive já vão se esvaindo devido ao caos.Esse anacronismo de valores é explicito nas palavras do soldado que quando questionado sobre o que seria a tal Guerra dos Boers que o velho Clyde sempre se referia com orgulho,responde: "Aquilo não era uma guerra!Apenas uma manobra de campo.";ou na forma antiquada de interrogatório visto como ineficiente para os jovens e  violentos inquisidores "pé-no chão".
É durante a Primeira Guerra que Clive,sem nunca ter esquecido de Edith,encontra sua amada no rosto da enfermeira Barbara(Kerr em seu segundo personagem),se casando com ela após o fim do conflito enquanto Theo,do outro lado, é  mais um oficial alemão devassado pela perda da dignidade em um pais destroçado.

No início da Segunda Guerra,viúvo de Barbara,Clive acolhe o também viúvo Theo em sua casa,após este fugir do nazismo,e contrata como motorista a jovem Angela(Kerr em seu terceiro personagem),coincidentemente namorada do insolente Spud.

Roger Livesey como Candy,supera a múltipla Kerr,entregando um trabalho de atuação perfeitamente único para a época.Um ator de persona própria como Bogart ou Grant ,ele vai além,usando essas características individuais numa composição sublime.A voz e a  sofisticação de sua compostura vão criando carisma para um personagem que vai se tornando ideologicamente irrelevante com o passar do tempo,envelhecendo sensitivamente com o personagem,e tornando próximo de qualquer ser humano uma criatura tão longe de ser popular na época como longe de ser visto como alguém tão rico de identificações: o típico representante das tradições antiquadas do alto comando do exército inglês.
O roteiro dos The Archers é uma auto-paródia cortante,que costura a vida de alguém que respira o militarismo e exalta o imperialismo,desabafando o desespero pendurando cabeças de animais indefesos na parede de casa, ao mesmo tempo que o torna um  homem de carisma quase heróico.Toda a realidade é vista como uma roda que não para de girar,onde os tempos e visões vão constantemente mudando.Por mais que Theo e Candy sejam vitimas dos tempos e seus fugazes valores,sempre haverá uma Debora Ker para mostrar o quanto isso é irrelevante diante dos verdeiros valores humanos.

sexta-feira, 7 de setembro de 2012

"Intolerância"(1916) - D. W. Griffith




"Intolerância" é um gênio mordendo os beiços de raiva e dando uma resposta à altura.Mas a tal intolerância à que ele se colocava contra,era perigosa.Seu filme "O Nascimento de uma Nação"(1914),o primeiro blockbuster,com mais de duas horas de duração,era claramente racista e glorificava a Ku Klux Klan.Essa visão racista histórica comum na época,encontrou forte reação numa sociedade que aos poucos conseguiam direitos para pessoas de cor.O filme foi proibido em algum lugares,e em outros pessoas protestaram abertamente.Mesmo que isso não tivesse conseguido prejudicar o seu sucesso de forma geral,deixou Griffith profundamente irritado,e "Intolerância" foi o seu soco na cara,o seu dedo do meio.
E foi caro...uma mega produção envolvendo Paris,Babilônia e Jesus Cristo sem ser racista e conter uma mensagem tão propositalmente virtuosa,foi estranhamente desprezado pelo público.

Sim,o chilique de Griffith não foi só caro mas artisticamente avançado,com os paralelos entre diferentes eras na narrativa surgindo fluidamente na edição muito mais aprimorada que em "O Nascimento de Uma Nação".Depois de assistir o italiano "Cabíria"(1914) de Giovanni Pastrone,outra jóia pioneira da narrativa homérica no cinema em que o Etna entra em erupção e pessoas são queimadas em templos de Moloch,Griffith assumiu as rédeas de um profissional que não deveria ver limites...com ele era "Pensou?Faz!".
O filme se divide em 4 histórias que se alternam durante o filme,cada uma ilustrando a intolerância: Jesus em seu caminho para a condenação,huguenotes antes de serem exterminados pelos Médicis católicos na Paris de 1572 no famoso Massacre do Dia de São Bartolomeu,um conto contemporâneo de crime e puritanismo opressor,e a queda da Babilônia traída pela intolerância religiosa de seus sacerdotes.

O que faz Griffith não ser apenas um diretor visual é o constante humanismo presente em boa parte de sua filmografia,apesar da duvidosa moral de "O Nascimento de uma Nação"(1914).O filme não procura se basear apenas no aspecto visual dos cenários históricos,mas em cada uma das tramas paralelas, personagens são profundamente desenvolvidos como pessoas vítimas da sociedade em sua volta,alguns tendo um fim trágico,outros conseguindo a redenção.Os namorados protestantes na Paris,indefesos e inocentes na véspera de uma carnificina,e ainda sob os olhos de um soldado do rei.A garota das montanhas, selvagem, apaixonada pelo príncipe Belsazar na Antiga Babilônia,cometendo atos heróicos disfarçado de homem para salvar sua cidade dos persas.E principalmente na história moderna,onde um casal é vítima do acaso e personagens coadjuvantes vão interagindo num mundo de crime tentador e velhas puritanas,que tentam tirar a bebê de sua mãe depois que seu marido vai injustamente preso.

A história do cinema muda a partir do momento em que Griffith junta em cross-cutting,em frenesi dignos de suspense moderno,o clímax de cada uma das histórias,num empolgante desfecho que exploram o máximo o poder da edição em se extrair emoção de uma trama cinemática.Todos os destinos dos personagens tomam seu desfecho praticamente ao mesmo tempo,multiplicando caleidoscopicamente o orgasmo visual avassalador.

"Janela Indiscreta"(1954) - Alfred Hitchcock



"Janela Indiscreta" foi a primeira e única vez em que Hitchcock pega um cenário e o transforma num ecossistema vivo e pulsante presenciado por nós numa posição voyeurística.Já mostrando ser mestre em ambientação única como em "Lifeboat"(1944) ,"Rope"(1949) e o anterior "Disque M Para Matar"(1954),a diferença de "Janela Indiscreta" é que a ambientação se divide em duas: o apartamento de Jeffrie e as janelas dos outros apartamentos que ficam em oposição ao seu.Jeffrie é um fotógrafo jornalístico aventureiro que se encontra agonizando com a perna quebrada,e se distrai espiando os vizinhos com seu grande e conveniente aparato de câmeras e lunetas.É quando pensa ter visto um crime numa dessas janelas que a dúvida da verdade entra em contraste com a ilusão do ócio e com a angústia da incapacidade móvel de sua condição física.Numa época em que as distrações domésticas não eram tantas como no mundo atual,Jeffrie tem apenas sua enfermeira,sua namorada,um incrédulo amigo detetive e os barulhos da cidade nevralgica que pulsa lá fora,o colocando como apenas uma formiga entre tantas no formigueiro da metrópole moderna.

"Janela Indiscreta" tambêm é uma prévia de seus filmes mais psicologicamente profundos que ele faria posteriormente,mas ainda aliados aos seus costumeiros estudos de relacionamento.Grace Kelly era o objeto de desejo sexual máximo do diretor,que coloca closes excitantes no rosto da personagem Lisa Fremont, representante da mulher moderna,cosmopolita e independente;protótipo do feminismo.O casamento tantas vezes ironizado por Hitchcock,é a primeira angústia de Jeffrie,que encontra na cadeira de rodas não só o obstaculo para por fim ao perigo de suas dúvidas,como para fugir das algemas matriarcais.
Jeffrie é um homem de aventuras,de nomadismo;Lisa é uma dondoca que escreve para colunas sociais e cada dia está com um vestido novo.Esses opostos românticos são constantemente postos em jogo pelo diretor ao mesmo tempo que uma nova pista surge para trazer barulho novamente à trama.O humor também usual nos filmes de Hitchcock está muito mais nas frases sinceras da enfermeira Stella(Thelma Ritter,uma das melhores coadjuvantes da época),do que nas birras do casal,dando uma seriedade muito mais profunda para um relacionamento tão díspare,além de aprofundar psicologicamente o personagem de Kelly.

Mas para entendermos a verdadeira genialidade do filme não devemos nos ater ao suspense e aos recursos visuais para criar climas de tensão.O suspense,o crime,e a resolução deste,acabam sendo apenas uma ferramenta para o desenvolvimento dos personagens entre si e maneira visionária com que o diretor aprofundou personagens que não falam,não se aproximam,não saem da mesma janela,e nem sabem que estão sendo espiados pela lente de Jeffrie.Personagens como a viúva solitária e suas desventuras amorosas,os namorados da dançarina,o pianista com bloqueio de criatividade,os recém-casados(casamento de novo) e o vendedor Lars Thorwald(Raymond Burr),que supostamente esquartejou sua inválida esposa.Ao final do filme todos esses personagens conseguem uma familiarização satisfatória com o espectador,através apenas de planos distantes,som ambiente,e com o diretor dirigindo seus atores de longe.A simbiose do ponto de vista de Jeffrie com o nosso é uma tradução simbólica da raiz cinematográfica de ser o olho humano expandido,presenciando o pulso do ritmo da cidade em um set de estúdio.


"Psicose"(1960) - Alfred Hitchcock



Que sorte que Hitchcock teve quando Robert Bloch publicou "Psicose" em 1959.Apaixonado pelo enredo que condizia muito com seus filmes psicológicos como "Janela Indiscreta","O Homem Errado" e "Um Corpo Que Cai",Hitchcock teria que driblar os produtores para que financiassem uma trama tão suja e perversa.Com o mesmo esqueleto autoral de "Um Corpo Que Cai", a primeira metade da trama seria um macguffin para que personagens aparentemente importantes fossem descartados para um novo desenvolvimento onde um caminho de intenso poder psicológico começa a ser desvendado.Ao invés do trauma e obsessão  de James Stewart,temos a psicótica insanidade de Norman Bates(Anthony Perkins,simplesmente o cara perfeito pro personagem),ou da influencia da mãe,constante nos filmes do diretor,que aqui atinge um ápice alucinante.
A reviravolta final que o livro propunha chegava à superar a revelação de Judy Barton em "Um Corpo Que Cai",fazendo com que todas as edições  fossem compradas pelo diretor.Um esquema de marketing mostrava um Hitchcock exigindo que as pessoas assistissem o filme desde o começo.Afinal,no auge de sua popularidade,com um programa de tevê,com o sucesso de "Intriga Internacional que foi quase sua Capela Sistina,Hitchcock tinha um alcance tremendo diante do público,que fez filas para assistir o filme.

O que faz "Psicose" ser tão bom nem é o sucesso de publico,a trama mirabolante,o final-surpresa,ou unicamente a cena do chuveiro."Psicose" foi a prova da contemporaneidade do diretor,que vinha como um pioneiro do cinema mudo.Já era grande nos 30,nos 40,nos 50,com grandes filmes em cada década.Em 1960,abrindo a década da libertação e da nouvelle vague,Hitchcock mostra o quanto ele pode usar de sua técnica para abusar da idéia de cinema autoral que estava sendo difundido pelos franceses,entrando em sintonia com cineastas modernos europeus,ou filmes como "A Marca da Maldade" de Orson Welles.Cansado de imitadores que se difundiam cada vez mais,os filmes da década de 60 do mestre abririam uma nova etapa na história da arte do cinema.E ainda pra calhar,colhendo toda a libertação que a década clamava,usa da violência,perversão sexual e psicopatia mental,que abririam a porta não só para o slasher,como para qualquer filme que tivesse como temática o lado obscuro porém real que a  mente humana pode alcançar, como foi em "Os Passaros" e "Marnie",posteriormente.

Assim como a vertigem em "Um Corpo Que Cai",a psicose humana é usada como um leitmotif tanto pros pululantes gráficos pulps de Saul Bass,quanto pras facas de cordas da trilha sonora de Bernard Hermann,talvez a maior  e a mais copiada do cinema.Os storyboards do próprio Saul Bass já não são mais para uma fuga espetacular,mas para assassínios crus e verossímeis,como a cena do chuveiro onde a edição distribui 50 cortes em 3 minutos descambando na sensacional transição do ralo ensanguentado para o olho de Marion Crane(Janet Leigh).

Outro brilhantismo que é importante destacar é o aspecto de filme b que o filme propositalmente abarca para si, aumentando ainda mais  a sensação  de perversidade sexual e de paranóia kafkiana.Produzido de forma independente pelo diretor,numa ótima demonstração de teimosia artística, o preto e branco acaba sendo um recurso de atmosfera opressora alem de favorecer o sangue,amenizando o gore.
Filmado com a cara de um episódio do "Alfred Hitchcock Presents" transformado em filme,os recursos visuais jogam constantemente com o espectador.Os enquadramentos constroem a atmosfera de uma forma tão aproximada com seus personagens como ele não tinha feito antes: na abordagem do policial, na conversa de Marion com Norman,na garganta ansiosa de Norman comendo amendoim sendo interrogado provocativamente pelo detetive Arbogast,a chuva caindo no para-brisa do carro enquanto os olhos de Janet Leigh vão se tornando cada vez mais perversos,...Os movimentos de câmera que falam por si mesmos mostrando aquilo que só nós percebemos e que vale a vida do personagem,se virando em movimentos inusitados para mostrar o ponto de vista de um crime sem que nada seja revelado.
Não é a toa que seja o filme mais reverenciado pelo giallo italiano,porque "Psicose " tem o clima de livrinho de mistério amarelado transformado em arte cinemática,com Hitchcock entrando na era dos auteurs reconhecidos intelectualmente e do rock'n roll,mostrando seu ponto de vista da psicótica sarjeta humana.

quinta-feira, 6 de setembro de 2012

"Intriga Internacional"(1959) - Alfred Hitchcock





"Intriga Internacional" é a despedida do Hitchcock de thrillers divertidos,tendo um casal como protagonista, com certeiras referências irônicas ao casamento.É um amálgama de convenções estilísticas adotadas pelo diretor nos anos 30,onde um "macguffin" serve de pretexto para uma sucessão de desventuras do homem errado contrabalanceando entre o suspense tipicamente inglês e a comédia romântica.Também é um rompimento com o passado em forma de despedida,onde ele daria continuidade no futuro à mesma abrangência psicológica iniciada em "Um Corpo Que Cai"(1959).

Os anos 60 precisavam de um Hitchcock renovado,como ele demonstraria estar em "Psicose"(1960),"Os Pássaros"(1963) e "Marnie - Confissões de uma Ladra"(1964).Escolher Cary Grant por achar James Stewart velho demais é paradoxal,Grant não passa nenhuma jovialidade,mas já no fim da carreira sela com chave de ouro a intervenção desses dois atores como preferidos do diretor.Tirando o melhor de "39 Degraus"(1934),"A Dama Oculta"(1938) e "Correspondente Estrangeiro"(1940),Hitchcock resgata suas origens britânicas contando a história do publicitário que é confundido com um espião e começa a ser perseguido incansavelmente por vilões liderados pelo fleumático James Mason enquanto tem na sua fuga a intervenção feminina de Eva Marie Saint.

O roteiro de Ernest Lehman procura utilizar ao máximo as reviravoltas narrativas em que as cenas de ação préviamente desenhadas em storyboards sejam habilmente orquestradas pelo diretor.Fugas em estações de trens,perseguições de aviões,escalar o Monte Rushmore,revelações de identidade...enfim,aventura descompromissada aliada à uma grande técnica autoral.
Já trabalhando com o compositor Bernard Herrman ,a trilha se tornaria uma referências para climas cartoonescos de mistério e espionagem.

"Intriga Internacional" é uma espécie de auto-elogio,de uma hipérbole do que fez o gordinho inglês pegar o avião e vir para os EUA virar lenda.É a exaltação do lado cômico associado ao inusitado e ao perigo.Um pré-Indiana Jones na pele do everyman representante do homem masculino dependente da mãe,vítima da inevitabilidade do casamento.Depois de "O Homem Errado" e "Um Corpo que Cai","Intriga Internacional" foi o chute na bunda do simbolismo e da profundidade psicológica para que Hitch possa provar que jogar estereótipos na tela e transforma-los em arte era com ele mesmo.É a comprovação do talento pulp fiction que os anos 30 ainda não sabiam discernir bem e que o vindouro anos 60 exaltava.Foi o filme feito para que se no futuro vierem a perguntar: "Quem realmente foi Hitchcock?",em vez de enumerar uma série de produções,a resposta certa seja um filme: "Intriga Internacional"

"Um Corpo Que Cai"(1958) - Alfred Hitchcock



Assim como já tinha feito em "Janela Indiscreta"(1954),Hitchcock se debruça de corpo e alma na obsessão.Ao contrário do voyeurismo,o distúrbio da vez é a vertigem,o medo das alturas que começa a assombrar Scottie(James Stewart) após este presenciar a morte de um colega policial enquanto estava pendurado num telhado.
De licença do trabalho,ele é contratado como detetive particular por um antigo amigo seu para que siga sua esposa Madeleine(Kim Novak),obcecada por fantasmas do passado.Quando a loira Madeleine tenta o suícidio na baía de São Francisco e é salva por Scottie,começa uma relação de paixão e angústia,onde fica claro a loucura neurótica de Madeleine,que comete suicídio de cima da torre de uma igreja,sendo que Scottie estava impossibilitado de salvá-la devido a sua acrofobia.
"Um Corpo que Cai" foi uma das obras do mestre em que ele conseguiu acumular todos os elementos para conduzir,não um suspense de matinê,mas o aprofundamento psicológico doentio e obsessivo.Por isso talvez não tenha tido tanto sucesso nas bilheterias,visto que à partir de "O Homem Errado"(1956),Hitchcock estava disposto a abrir um leque maior de possibilidades temático-psicológicas em seus filmes.

Hitch estava disposto a interligar as diferentes elementos do filme numa visão só,numa intenção única:a vertigem e a obsessão
Pela primeira vez a trilha de Hermann estava casando perfeitamente com a intenção do diretor,sendo ela em separada uma paranóia em espiral vertiginosa,onde os momentos calmos são conduzidos por uma melodia de um coração destruído pela perda,mas ainda vivendo um pesadelo.Assim entram os créditos inicias pós-modernos de Saul Bass, em sintonia  com a música na definição do motivo psicológico principal.
O perfeccionismo do ritmo da narrativa é o que continua impressionando,dividindo o filme em duas partes distintas.O uso do recorrente macguffin para enganar o público,acaba sendo toda a primeira hora,onde uma série de mistérios são cuidadosamente desvendados,quase que em tempo real com Scottie,que segue aterrorizado os trajetos de Madeleine.

De repente o suicídio da loira.
Scottie doente e traumatizado com o inexplicável do sobrenatural,quando quase-recuperado,encontra por acaso na rua Judy Barton, uma mulher parecida com Madeleine,porém morena.A abordando,consegue conquistá-la,mas obsessivamente montando uma saudade sua,repaginando toda a mulher pintando os seus cabelos de loiro e comprando roupas idênticas da falecida.


A câmera de Hitchcock explicita ainda mais a intenção que o diretor tinha de descobrirmos por nós mesmos aos poucos as armadilhas da trama(indo do bouquet do quadro,para o bouquet nas mãos de Madeleine por exemplo),nos conduzindo no sentido do  que o detetive vai costurando.Truques visuais são cuidadosamente colocados em momentos dignos de nota:o dolly-out/zoom-in que representa o mal-estar de Scottie nas alturas;a sucessão de cenas surreais no pesadelo de Scottie quando ele despiroca total depois da morte de Madeleine;a ressucitação de Madeleine em Judy,que surge etereamente como um fantasma à partir do verde do neon que se espalha pelo seu quarto;a sucessão de giros que a câmera dá no impressionante beijo em que o background muda de acordo com as lembranças ressucitadas de Scottie;o escurecimento da imagem quando o livreiro conta a estória de Carlota Valdes;enfim uma sucessão de detalhes que convergem para um todo conceitual tão perfeccionista que superou os próprios trabalhos anteriores do inglês.
Até o figurino da sempre presente Edith Head foram dispostos em cores que ressaltavam o clima psicológico/espiritual dos personagens,com o cinza contrastando de forma berrante com os cabelos de Madeleine.

 Como novamente ele faria em "Psicose",Hitch joga com metade da narrativa,matando personagens importantes e repentinamente mudando o sentido que a estória,já envolvente,estava tomando.E essa genialidade de tentar ao máximo,seja em pesadelos surreais ou visões do além,retratar  distúrbios mentais em imagem e som no cinema,foi o que fez Hitchcock no final dos anos 50 começar mais uma nova etapa influente de sua carreira.Usando de todas as possibilidades da cor para construir um ambiente noir sem preto-branco,San Francisco nunca foi um cenário tão participativo na loucura de um dos seus heróis do dia-a-dia,com o vermelho e o verde iluminando a vida íntima de um policial apaixonado e atormentado .

"No Tempo das Diligências"(1939) - John Ford



Não é preciso dizer muito...apenas assistir "No Tempo das Diligências" para compreender sua magnitude.É a reconstituição do coma em que o western de Ford estava desde o cinema mudo,em que filmes como "O Cavalo de Ferro"(1924) já mostravam um universo todo particular seu.O que acontece são algumas possibilidades que o a própria estória encerra,como diferenciados personagens viajando numa apertada diligência por entre um território indígena,respirando o mesmo ar de diferentes classes.
Ford reinicia uma nova era de filmes colocando todos os seus personagens recorrentes em um lugar só: o bêbado irlandês Doc Boone(Thomas Mitchell realmente louco),a prostituta Dallas,o jogador sulista Hatfield,a esposa grávida de um soldado Mrs. Mallory,o idiota vendedor de whiskey Peacock ,o banqueiro ladrão Gatewood,o fugitivo da justiça Ringo Kid( John Wayne,icônico),o xerife Curly,e o cocheiro Buck.

Orson Welles disse ter assistido 40 vezes enquanto filmava "Cidadão Kane",o que é de se acreditar visto que todas as possibilidades exploradas por movimentos de câmera são usadas seja na interação dos atores para mostrar a diferença social entre seus personagens,ou seja em perseguições de índios como no brilhante trabalho de dublê com uma corrida de carruagens e cavalos,quando Ringo Kid tem que pular com a carruagem em alta velocidade até o cavalo-líder.
Assim como a marca fotográfica de seus filmes de destacar o cenário,presente em alguns filme na década de 30,com o Monument Valley pela primeira vez explorado,e a cidade soturna onde o duelo de Ringo com seus inimigos se desenrola no final.

"No Tempo das Diligências" não é só o filme mais influente do western e do cinema de ação ocidental não.
Ele é o filme em que Ford mais exalta o marginal,a sociedade mal-vista,os tornando heróis em todas as possibilidades.A condenação do puritanismo,a prostituta amparada pelo bêbado e o pistoleiro fora-da-lei salvador.John Wayne,que mais tarde se tornaria como que um símbolo do conservadorismo norte-americano,sai dos filmes b e se torna o representante marginal da raiz do povo americano.
A sua aura icônica  atravessou décadas,graças àquele zoom-in trêmulo que Ford usou para apresentar  o personagem de Ringo Kid,um fugitivo da cadeia disposto a matar quem assassinou seus pais e irmãos.

"Paixão de Fortes"(1946) - John Ford




"Paixão de Fortes" é quando o western dá um passo a frente no mundo da arte,é o filme mais importante nesse sentido desde "No Tempo das Diligências"(1939).É o filme-prova da sofisticação estilística da paisagem fordiana em um belíssimo contraste de claro escuro,dilatando o cenário acima de todos.É a personificação mais perfeita do herói americano,portador da justiça e do equilíbrio,mantenedor da família que é dilacerada aos poucos pela maldade selvagem de um país em construção.
Para quem gosta de cinema japonês e quer saber de onde Mizoguchi ou Kurosawa tiraram inspiração de Ford,"Paixão de Fortes" é um ajuntamento de descobertas.É emocionante perceber hoje em dia o quanto um filme com título original vindo de uma  canção popular("My Darling Clementine") e a "reconstituição" de um momento histórico manjado do Oeste americano rendesse uma dádiva assim tão cheia de sensibilidade simplesmente por sair da mente de um homem que exalava sua visão em películas.

O filme remete à Wyat Earp(Henry Fonda),que junto com seus 3 irmãos tocam gado perto da cidade de Tombstone.Após serem abordados pelo velho Clayton(Walter Brennan),vão visitar a cidade de Tombstone deixando seu irmão mais novo James na espera.Quando eles voltam encontram James assassinado e o gado roubado.Decidido por vingança,Earp e seus dois irmãos restantes Virgil(Tim Holt de "Soberba" e "O Tesouro de Sierra madre") e Morgan(Ward Bond,onipresente) decidem retornar à Tombstone com Wyat Earp se tornando xerife,e contando com a associação de um falcatrua dono do casino local,Doc Hollyday(Victor Mature),na verdade um médico turbeculoso e as mulheres que o cercam.
A tensão do enfrentamento entre as duas famílias é permeado do  que Ford mais gosta: o passado já famoso de Wyat que impõe um certo respeito entre os populares;os seus feitos heróicos(como conter o indio bêbado no inicio da trama);o fato de as vítimas serem irmãos de sangue,que dói mais,construindo o famoso  lençol agonizante e melancólico com que torçamos constantemente por redenção e vingança cumprida;a morte mais uma vez enfrentada com dor em conversas na lápide cheia de promessas;a inabalável moralidade do protagonista sempre surpreendendo;e as brigas,os momentos cômicos extraídos de uma cidade de tensão visitada por um ator shakespeariano bêbado...a meiga Clementine disputando Doc com a extrovertida e quente Chihuaha(Linda Darnell) enquanto traz à tona o que tem de mais acessível no coração do frio e metódico Wyatt Earp.
O Monument Valley se encontra grandioso como sempre,mas o que realmente vale a pena em "Paixão de Fortes" é ver a distribuição dos personagens por entre os sets de Tombstone,com o progresso como alguém como Earp consegue proporcionar para toda uma população,com Henry Fonda se equilibrando na cadeira e circundando entre barbearias e saloons com a cabeça à prêmio.

Henry Fonda mais uma vez mistura a sobriedade,com dureza e com simpatia.Uma grande performance numa construção de personagem interessantíssima,um herói de western diferenciado de um  ator versátil,que viria a ser um grande vilão no futuro com "Era Uma Vez no Oeste"(1968) de Sergio Leone.Em "Paixão de Fortes", a maneira como ele gesticula,como ele dirige o olhar distribuindo confiança e equilíbrio o destaca como o ideal do americano,longe de ser um marginalizado,ou um cowboy existencialista.Apenas um herói da lei justa.O herói da estrelinha no peito.