domingo, 2 de setembro de 2012

"Bande à Part"(1964) - Jean-Luc Godard




"Bande à Part" é a liberdade acima de tudo.O "Jules e Jim" de Godard.O glamour da vadiagem,da cidade,das ruas,de Ana Karina.A tentação direcionada ao crime,ao fazer o errado.Ao realismo com cara de improviso.É a linguagem new wave de Godard menos pretensiosa e mais apaixonada.Sem retro-projeção,a câmera se posiciona como observadora e se movimenta como uma pedestre,fazendo de Paris o personagem principal,e os sentimentos da cidade são o que há de mais honesto em sua sociedade de  delinquentes que guardam armas na lavanderia,e iludem moças a cometerem crimes tendo a cultura pulp de filmes-b como influencia comportamental.Aqui no caso,Franz e Arthur tentando fazer a cabeça de Odile (Karina) para cometer um roubo dentro de sua própria casa.Em meio a flertes ,ciumes e seduções sinceras,a cabeça de Odile vai se voltando claramente à uma cumplicidade no anseio ao proibido.

Anti-heróis marginais convivendo nas margens dos arroios lendo a coluna policial em voz alta,sofrendo violência em casa,que chegam ao ponto de correr nos corredores do Louvre e gastam um bom tempo em café.Uma dança soul.Toda uma influência posterior em Tarantino.Anti-heróis sujeitos à anti-convenções narrativas,como digressões em  narração do próprio diretor se colocando numa intertextualidade, explicando os sentimentos dos personagens que interagem de maneira adolescente no cursinho de inglês,nos chamando à realidade.
Modernos acima de tudo,cosmopolitas e globais;o fatalismo do marginal é o que Godard mais capta no noir norte-americano.Assim como a liberdade que a câmera adquire em tracking shots ou closes que possuem a mesma intenção proposta pelo neo-realista Rosselini -expor a crueza do rosto humano,sem qualquer máscara.
A câmera no banco de trás do conversível sentindo o cheiro das ruas.
Cada um dos três possuem a sua malandragem independente das diferentes reações face ao trágico desfecho da irresponsabilidade.

Assim como em "Acossado" e "Pierrot le Fou",o que importa pra Godard é o anarquico,o anti-social,o vadio,o malandro como representante da liberdade da Nouvelle Vague.É a crônica de uma cidade estilizada,a arte do low budget,do do it yourself.Os atores nem são mais atores,estão imersos na frescura de uma interpretação descompromisadamente familiar.Karina somente se deixa ser Karina com seus olhos expressivos e sua beleza sensual,a musa do movimento,mais linda que Jeanne Moureau.
"Bande a Parte" é Godard em estado bruto,paradoxalmente exaltando a despretensão.

"A Noviça Rebelde"(1965) - Robert Wise



Depois de filmar seu primeiro musical,"Amor,Sublime,Amor"(1961),e praticamente restituir o gênero à uma nova posição,Robert Wise decidiu voltar ao intimismo do romance de "Dois na Gangorra"(1962) ou o horror psicológico de "Desafio do Além" (1963).Mesmo que o musical da dupla Rodgers and Hammrstein's já fizesse sucesso intenso na Broadway,a sua fama de açucarado demais não só afastou o próprio diretor no início,como nomes como Donen e Gene Kelly também recusaram o projeto,que esteve nas mão de William Wyler  e que ao fim de tudo largou de mão para filmar "O Colecionador".Essa batata quente voltou nas mão de Wise que como de costume,usou de seu profissionalismo para extrair o máximo do cerne da obra.
É aí que entra a indignação quanto ao título brasileiro,já que a noviça rebelde nada mais é do que o instrumento da verdadeira protagonista do filme,que é o som da música.O que move o filme é a paixão pela música e na sua capacidade de  transformação espiritual,porque é a música que constantemente durante a historia se encontra como a heroína tanto nos conflitos de relacionamento familiar,quanto no êxtase hiperativo e sexual da noviça nas colinas,seja na forma como a noviça se integra ao convívio com as crianças,ou quando serve de mote pra a fuga politica no final.O som da música e sua influencia são o que interessa aqui.

Se formos comparar com "Amor,Estranho,Amor",enquanto a música de Bernstein é meio tradicional e acomodada demais,a música de Rodgers e Hammerstein já nasce com a pretensão de se unir um excelente arranjo com uma melodia envolvente,alcançando o objetivo.Musicas realmente brilhantes como "Do-re-mi"(com uma edição invocando o êxtase da liberdade através da escala musical),"My Favorite Things"(que virou peça de jazz de 14 minutos nas mãos de John Coltrane),constrastam com despreziveis letras-de-puberdade de "16Goin On 17"(cantada na inútil cena da chuva tendo a descoberta sexual de Liesl como mote de conservadorismo irritantemente canastrão na forma do primeiro beijo)ou as poucas inspiradas cenas de cantoria das freiras no inicio do filme.Assim como "Amor,Estranho,Amor",o modo de Wise conduzir os momentos de cantoria contando com montagem repleta de sinapses temporais é o que dá o grande prazer emocional ao filme,e assim soube-se retirar o que há de pungente em cada uma das grandes músicas."Sound of Music" por exemplo,é tão auto-afirmativa em seu poder melódico de exaltação,que Wise só se contentou em introduzi-la no filme,antes dos créditos iniciais,no estupendo plano filmado de um helicóptero onde a câmera sobrevoa as colinas e encontra Julie Andrews de forma brilhante cantando "The hills are alive,with the sound of music...".É "Sound of Music" que descongela o Capitão Von Trapp.Afinal,é essa canção que dá nome ao filme(plim!) representando consequentemente a intenção supra-citada de mostrar como a música insere o amor e a esperança no ser humano através de uma melodia tocante.

Como o Capitão Von Trapp  é um viúvo Capitão da Marinha Austríaca,anti-nazi,que vive no final da década de 30 quando a Austria está prestes a ser invadida pelo Nazismo,e recebe como nova governanta a espirituosa noviça Maria que traz de volta o amor ao seu coração congelado através das cantorias e brincadeiras,os defeitos do filme começam quando a transição do efeito da musica sai do caráter individual dos corações da pessoas em seu retorno ao carinho familiar,e pula para a visão politica do nazismo,que não tem um desenvolvimento tão completo,ao ponto de ser baseado num relacionamento tosco e superfical de Liesl com o mensageiro Rolfe circundado de personagens caricatos que resumem o autoritarismo à ameaças kafkianas.Enquanto o enredo se torna uma ode ao catolicismo e ao conservadorismo, esses vilões/caricaturas vão surgindo em situações que destoam do caráter metafísico e redentor da primeira metade.Seria o facismo do conservadorismo do casamento,contra o facismo politico.

Alem da música,Julie Andrews tem o carisma necessário para uma heroína,e aqui as atuações dos adultos supram sobremaneira as previsíveis crianças.O carisma não foi o suficiente para omitir a clara mudança de seu personagem depois do casamento,numa obvia renúncia patriarcal que não condizia com o aspecto mais libertário de sua personalidade pura do convento,onde o êxtase sexual se resumia só a cantarolar e se atrasar às igualmente facistas obrigações do convento.Com filosofias anacrônicas e hipócritas tanto pro seu tempo quanto para o tempo em que a historia se desenrola,foi essa esperança no conservadorismo que o panico do mundo capitalista do pós-guerra proliferou que fez do filme um sucesso-família.
Se nos concentrarmos apenas no poder da música conduzida pelas imagens do Wise  e na santificada presença do talento de Andrews,pode-se sem dúvida extrair um imenso prazer acima das questões morais e políticas que o destino da historia insere na humanidade e em diversas manifestações artísticas que se tornam retrógadas com o passar do tempo.

"Desafio do Além"(1963) - Robert Wise




"Desafio do Alêm" foi a prova definitiva do talento de Wise.Depois do extravagante e colorido "Amor,Sublime,Amor",ele retorna ao preto-e-branco e se associa a motivos hitchcockianos e artimanhas sonoro-visuais para adaptar um dos livros de terror mais elogiados do seculo XX.
Se voltando ao psicológico individual e criando um conflito entre o sobrenatural e a paranóia,"Desafio do Alem" foi,junto com filmes como "Psicose" e "Vertigo",um dos grandes representantes do retrato do distúrbio mental em um enredo de horror.O uso de uma mansão mal-assombrada como catalisador das emoções humanas faz perdoar o mal que Wise fez para o filme "Soberba" de Orson Welles,que coincidentemente tambêm usava uma mansão como cenário do desenvolvimento de seus principais personagens.

Os primeiros 6 minutos do filme são narrados pelo Professor Markway e conta todo o antepassado percorrido por tragedias que a mansão carrega em si,em uma série de flashbacks,numa síntese magistral que comprova mais uma vez o talento do diretor para montagem,e o seu costume de sempre começar seus filmes de forma impactante.O tal Professor decide reunir um grupo de paranormais para conseguir descobrir algo que prove o sobrenatural presente na casa.Servindo de sempre convenientes observações,Markway é o homem respeitavel que defende apaixonadamente a existência do sobrenatural em resposta à incredulidade arrogante do jovem Luke Sanderson ,herdeiro da mansão que decide se juntar ao empreendimento.As duas paranormais são Theodora e Eleanor Vance.Enquanto Theo usa de sua telepatia de forma provocativa carregando consigo uma lascividade lésbica,Eleanor é uma jovem reprimida sexualmente que procura desesperadamente por uma fuga do sofá da casa de sua irmã,onde ela vive após ter cuidado anos da mãe doente e ter presenciado um poltergeist.

Diferente do livro de Shirley Jackson,o filme se afasta dos outros personagens e se concentra exclusivamente na esquizofrenia irritadiça e neurótica de Eleanor,usando a sua repressão de forma quase que doentia como a principal vítima dos fenômenos paranormais.Devido à sua fraqueza,o sobrenatural a utiliza de todas as formas possíveis,fazendo dela a causadora dos mais trágicos desfechos na casa.
É no retrato de Eleanor que Wise se mostra genial,sem exagero.O seu uso de profundidade de campo pra ressaltar a alienação da personagem,assim como a utilização de voice-over em que Eleanor explicita todos seus medos,desejos e anseios,são o que deixa tênue a linha entre os fantasmas interiores e os exteriores.E ha de se ressaltar que Julie Harris faz mais outro grande trabalho metódico de atuação que faz com que o horror do filme se concentre mais no medo da nossa perspectiva em relação ao destino de uma personagem tão frágil,do que qualquer susto no escuro.

"Amor,Sublime,Amor"(1961)-Robert Wise



O musical "West Side Story" de Arthur Laurents foi uma das primeiras modernizações de uma famosa peça de Shakespeare,"Romeu e Julieta",transposto para as gangs do lado oeste da Nova York contemporânea,onde os americanos brancos se encontram em constantes guerras com os imigrantes porto-riquenhos pelo domínio do território.Robert Wise nunca tinha dirigido um musical e o seu conhecimento das ruas de Nova York só eram expostos em noirs sombrios e melodramáticos.A sua já conhecida versatilidade e o seu currículo extenso lhe garantiu não só dar o primeiro passo no gênero musical,como revolucionar tal gênero,usando montagem para expressar o ritmo ou o tema da letra,tendo a sorte de ainda serem confeitadas com acrobacias incríveis de Jerome Robbins(coreógrafo a quem foi concedido o credito de co-diretor pelo próprio Wise.

Diferente de uma produção musical feita para os teatros mágicos da Broadway,a adaptação para o cinema leva consigo um certo perigo.Porque apesar do triunfo da direção conseguir criar imensas danças e refúgios visuais com a ambivalência da cor violeta e amarela assim como momentos sublimes: a maravilhosa introdução com a câmera esvoaçando entre bailarinos se digladiando entre si num cenário até então pouco explorado por um musical,protagonizar com danças assuntos sérios como marginalização,xenofobia e racismo envolve uma certa responsabilidade.E em levantar questões referente a esse aspecto social,o filme é falho,por não conseguir fazer com que uma denúncia se sobressaia em meio ao tratamento fantástico-visual.
Percebe-se  que o filme tenta mostrar que ambas as gangs estão inconscientemente unidas pelo mesmo preconceito que fere a  marginalização social,como o aspecto de vilão da policia,indisposta ao entendimento psicológico dos delinquentes,porem é uma questão que fica sempre de lado para favorecer o desenvolvimento do romance e das sequencias eufóricas.
Os latinos ofendidos por serem imigrantes  e os brancos pertencentes á "social disease" ,é demonstrativo do receio do filme se auto-impor como uma forma de julgar qualquer lado.
As atuações de Russ Tamblyn como Riff(o líder dos brancos),que se mostra atleticamente favorável ao personagem,e em Rita Moreno,como Anita,são as mais sinceras e condizíveis  sem cair no abuso de recursos melodramáticos do resto do elenco.Toda essa artificialidade contrastando com pseudo-realismo faz com seja impossível  desassociar a imagem de filme-de-Oscar-aparência-política,visualmente lindo e aparentemente inofensivo.
O crédito de Wise não é a toa,o visual é o que mais impressiona,criando uma forma de simbiose imagem-musica que influenciaria Bob Fosse e Bahz Luhrmans e se sobrepondo até mesmo às musicas de Leonard Bernstein e Stephen Sondheim,sendo que esse ultimo mostra na letra  analítica de "Gee,Officer Krupke" o que teve de mais astucioso em toda a tentativa do filme em retratar o jovem delinquente.

"O Dia em que a Terra Parou"(1951) - Robert Wise



Robert Wise não se importava intelectualmente com o quanto os  seus filmes poderiam representar de acordo com uma visão de mundo particular sua.A ligação dele com o filme era primordialmente estética.O seu domínio estava muito mais ligado com a edição e os recursos plásticos,que convergiam para o tema contextual do filme que lhe era imposto a dirigir.O que se pode chamar de versatilidade habilidosa.Um homem de diferentes gêneros,extraindo de cada um sua expressão artística mais latente.Trabalhando nos diversos componentes do esqueleto fílmico de mestres como Ford e Welles - de edição de som à montagem - ,sua experiencia lhe deu a capacidade de exprimir de si mesmo a linguagem pura do cinema independente da mensagem a ser emitida.Robert Wise foi um grande inspirador dos cineastas da New Hollywood,que buscaram percorrer pelos diferentes gêneros clássicos do cinema,sem se esquecer da honestidade estilística de cada um.

O que impressiona é  o contexto histórico.Situado em plena Guerra Fria e um pouco mais de 5 anos após o fim da Segunda Guerra e o surgimento da ONU,uma mensagem anti-atômica vindo do espaço substituiu os monstros perigosos e ou guerras de naves espaciais da ficção cientifica mais popular até então,abrindo as portas para uma abordagem mais metaforicamente politica,servindo às exigências intelectuais de uma humanidade muito mais realística e prestes a esbravejar contra o caos da modernidade.Situado num mundo que se apresentava como um tabuleiro de xadrez entre duas ideologias,com a coragem de revelar sutilmente o quão desprezível e ridícula são tais domínios ideológicos diante de uma realidade superior.
É ai que entra a genialidade do roteirista Edmund H. North em fazer uma analogia do extraterrestre Klaatu - cuja aparência humana também muda a face da ficção cientifica,nos aproximando do que é desconhecido de nós mesmos - ,com Jesus Cristo,dentro da subliminaridade da mensagem pacífica e de alerta,da condenação,da morte e da ressurreição.

O modo abrangente de Wise arranjar o artefato fílmico no conjunto de todas as partes vai desde o sons da nave espacial até o modo como Bernard Herrman usa o teremin(por sinal um dos primeiros instrumentos eletrônicos),ou a direção de arte embasbacante do interior da nave, só fazem se sobrepor àquele ufanismo recorrente de filmes americanos do pós-guerra em se colocarem como estereótipos da eficiência,não só distantes do resto do mundo em sua prepotência,mas se vendo sempre como se fossem somente eles os olhos do mundo.Ufanismo que irritantemente percorre as entrelinhas da visita de Klaatu ao american way of life desestruturado,ou de um país que não perde o orgulho nem no meio do pavor.O que é perigoso num filme com semelhante mensagem e caminha bambeamente na linha da propaganda ideológica do capitalismo mascarada num discurso anti-bélico.Mas a paranoia que a obra representa é muito sincera,e é esse medo sincero no mundo da ameaça atômica que faz com o que o intuito principal da mensagem do filme seja atingido acima de qualquer facção,dentro da aparência de um episodio bem produzido do "Twilight Zone".